Da Serenidade Humana
A serenidade baixa do céu sobre os homens. Mas, às vezes,
serpeia docemente aos nossos pés, na cantiga de córrego, ou adormece em reflexos
aos nossos olhos, na face de um lago.
Todos os homens admiram a serenidade, embora vivam na inquietação e a ela se
acomodam. Imperadores e príncipes, como o Doge de Veneza, a República
Sereníssima, atribuem-se o título de serenos. E os poetas e os pintores jamais
encontraram motivos mais belos que a serenidade de um rosto de criança, de jovem
ou de mulher.
Serena é a vida, quando feliz. Serenas correm as nuvens, na transparência azul
do céu. Serenas são as flores, e serena é a brisa que as embala e carrega os
seus aromas. Sereno é o ar, nas manhãs de primavera, e serenas as estrelas, nas
noites de inverno.
Até mesmo a tempestade é serena na sua fúria, pois o que dela nos parece fúria
decorre das diferenças de tempo. Um minuto de temporal equivale a uma hora de
rotina humana. É assim que a própria aceleração do tempo, que nos parece
inquietação, também se transforma em serenidade, quando atinge a velocidade
máxima. Serenos giram os mundos no infinito, como serenos giram os elétrons no
finito das constelações atômicas.
Certa manhã de abril, do ano de 1935, vi a serenidade fluir sobre a cumeeira das
casas, na cidadezinha de Cerqueira César. Parei na rua, para contemplar o sereno
espetáculo. Não era o tempo, nem o vento, nem as nuvens que corriam. Era a
serenidade, essa inexprimível doçura das coisas, que fluía sobre as cumeeiras de
telhas enegrecidas, tendo por fundo o azul do céu.
Nesse dia, perguntei a mim mesmo por que motivo não somos serenos, mas
inquietos, e muitas vezes até mesmo tumultuosos. Lembrei-me da ataraxia de
Demócrito, de Epicuro e de Zenão, e as palavras de Jesus soaram-me aos ouvidos
da alma: "A minha paz vos dou, mas não vo-la dou como a paz do mundo". Nesse
mesmo dia, resolvi que procuraria descobrir o segredo da serenidade.
Faz hoje trinta anos que isso aconteceu, e até agora não consegui a chave do
mistério. Seria fácil dizer, como Sartre faz com a liberdade, que a serenidade é
a essência do homem. Mas como prová-lo, se o homem não é livre nem sereno, e
sim, pelo contrário, o escravo inquieto de si mesmo? Seria fácil dizer, também,
que a serenidade é a essência das coisas, ou até mesmo a essência do mundo. Mas
como demonstrá-lo, se as coisas e o mundo nos mostram ao mesmo tempo a
serenidade e a inquietação?
Poderíamos dizer ainda, como Platão, ou como Sócrates e ele, a propósito do
amor, que a serenidade é uma falta, um vazio do ser, que procura o seu
preenchimento. Mas o ser pleno de serenidade e o ser vazio - se é que a
inquietude pode ser alguma coisa de vazio, e a serenidade uma plenitude - por
acaso não são, ambos, essencialmente a mesma coisa?
O máximo que podemos alcançar é que a serenidade é a serenidade. E essa
tautologia se justifica pela sua própria necessidade. Pois como definir a
serenidade, senão pelo que ela realmente é? E o que ela pode ser, senão
serenidade? Inútil, pois, procurarmos novas palavras, para definirmos aquilo que
já definimos com uma única e bem aplicada palavra, que se ajusta perfeitamente
ao seu conceito.
Saindo, porém, das coisas, dos seres em geral, e do mundo com sua mundanidade, e
deixando além de nós e do mundo a imensidade cósmica, tentemos descobrir o que é
a serenidade humana. Que não é a serenidade-título dos príncipes, bem o sabemos.
Porque a maioria dos príncipes serenos somente o são no tratamento convencional
um Duque sereníssimo, que é o exemplo vivo da inquietação e da precipitação.
Poderíamos dizer, com Epicuro, o sereno injustiçado, que a serenidade é a
ausência de movimento, de agitação. Mas, se a serenidade é uma ausência, jamais
a alcançaremos. E se ela exclui o movimento, como falarmos do homem sereno, que
só poderia ser um cadáver? E se ela exclui também a agitação, como falarmos da
brisa serena, que agita serenamente as flores?
Lembro-me do príncipe André, de GUERRA E PAZ, de Tolstoi, caído no campo de
batalha de Austerlitz, e descobrindo no alto a serenidade do céu. Suas palavras
são as de um homem que a si mesmo se encontra nas coisas, mas não propriamente
nas coisas, e sim na serenidade das coisas, Ouçamo-las:
"Como se explica que eu nunca tenha visto, um céu tão alto? Como me sinto feliz,
de tê-lo finalmente descoberto!"
Talvez tenhamos nessas duas frases a chave do mistério. A serenidade do céu
esteve sempre aberta sobre a cabeça do príncipe, desde que ele nasceu. Mas nunca
ele a vira, porque, ou corria entre Moscou e Kiev, ou corria no campo de
batalha, antes de ser ferido. Por isso, a sua conclusão é perfeita, como a de um
silogismo, quando acrescenta:
"Sim, tudo é fatuidade, perfídia, salvo o céu infinito! Nada existe além dele.
Mas ele próprio não existe. nada existe além da calma e do repouso. Deus seja
louvado."
André substitui a palavra única por duas: "calma e repouso". Mas não te a
pretensão de dizer outra coisa. Quer apenas explicar-se melhor a própria
descoberta. A serenidade, então, seria a própria existência? Heidegger explicou
que a existência é um sair fora de nós mesmos: ec-sistir. E parece ter razão,
quando analisamos o que chamamos por existência. Ora, a serenidade não pode ser
isso, pois ou ela está conosco, e a sentimos em nós mesmos, ou não a temos. Por
outro lado, a serenidade de fora deve ser aquela paz do mundo, paz exterior, que
Jesus diferenciou da sua própria paz.
Não a serenidade não pode ser o existir, mas talvez seja o ser, pois aquilo que
é, como ensinou Aristóteles, é. Mas então seria o ser, não enquanto ser, mas
como ser, na aparente indiferença e alheiamento da terceira pessoa: é. Este é
pode ser ele e pode ser eu. É ao mesmo tempo unidade e desdobramento, mas
desdobramento voltado para a unidade. Só ele explicaria o fato de o príncipe
André aceitar e rejeitar, ao mesmo tempo, que a serenidade seja e não seja
existência.
Quando vi a serenidade fluindo na cumeeira das casas, ela estava também em mim.
O príncipe André a viu no céu alto e sombrio de Austerlitz, em meio da refrega,
mas só a viu porque estava ferido, lançando ao solo, fora da refrega. E porque,
assim excluído subitamente da inquietação geral, encontrou-se a si mesmo, o que,
por sua vez, lhe permitiu encontrar o céu, que estava ali mesmo, sobre a sua
cabeça, e no entanto ele havia perdido.
No dia 26 de abril de 1935, chegando em casa, fui ao meu quarto e escrevi, na
primeira página de um livro de leitura habitual - e por sinal um livro de
literatura inquieta, mas que leio até hoje e me dá serenidade - aquilo que
chamei de trilogia do serenista. Pensei que o serenista seria o amante da
serenidade, e que devia, por isso mesmo, ter alguma coisa que o guiasse em
direção a ela.
Por que trilogia? Talvez em homenagem a Pitágoras, que descobriu a harmonia. Ou
talvez, por ser o meio mais cômodo de indicar, em apenas três proposições, um
longo caminho, que o serenista terá de descobrir por si mesmo. Hoje, trinta anos
depois, procuro simplificá-la, diminuindo das frases algumas palavras
excessivas. e posso reproduzi-la assim:
1º Procura sempre a perfeição.
2º Nunca te deixe abater.
3º Eleva-te sempre às circunstâncias.
Nada me parece mais prático, até hoje, do que essa pequena tríade, quase
simplória, para alcançarmos a serenidade. E embora tenha de confessar que ainda
não a encontrei na plenitude desejada, posso afirmar que dela me aproximei
algumas vezes. além disso, essa tríade, de tipo gaulês, me parece muito útil
para se tentar a explicação do que seja, pelo menos, a serenidade humana.
Herculano Pires