Decifrando a Própria Natureza

Em 313, o Imperador romano Constantino concede, oficialmente, liberdade de culto aos cristãos que na prática já se organizavam numa instituição bastante influente na época: a Igreja (do grego ekklesía, isto é, “assembléia”). Mas somente após o Concílio de Nicéia, em 325, é que se estabeleceu a ortodoxia, que literalmente significa “opinião correta”, da doutrina cristã, que elevou a igreja de Roma ao centro da cristandade.
Mas, para se consolidar uma ortodoxia, não basta que ela seja decretada oficialmente. É preciso que seja convincente, que se apresente não apenas como revelação, que é uma questão de crença, mas também de forma racional. Segundo Jostein Gaarder, em O Mundo de Sofia , quase toda a filosofia da Idade Média gira em torno das seguintes questões: as pessoas tinham que simplesmente acreditar na revelação cristã ou podiam se aproximar das verdades cristãs com a ajuda da razão? Havia contradição entre a Bíblia e a razão ou será que a fé e o conhecimento podiam conviver em harmonia? Qual a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia?
O esforço de municiar a fé de argumentos racionais foi obra de alguns santos padres, como eram chamados os filósofos patrísticos, e Santo Agostinho é quem leva mais longe a conciliação entre a fé e a razão e elabora a “filosofia cristã”. A época em que viveu estava mergulhada no ceticismo, pairavam dúvidas se a verdade poderia ser conhecida. Cabe então a Santo Agostinho restaurar a certeza da razão, e isso, paradoxalmente, por meio da fé. Para ele, as demonstrações matemáticas e lógicas provam que o conhecimento da verdade é um fato. Segundo ele, somente através da fé podemos descobrir as verdades divinas. “Compreender para crer e crer para compreender”, essa é a regra a seguir.
Em Confissões , Santo Agostinho narra minunciosamente sua vida e exprime o seu pensamento: o ceticismo que experimentou quanto ao conhecimento, a culpa que sentiu ao se acreditar em pecado, a esperança na graça divina e a certeza da verdade na fé, onde finalmente se encontrou. Nesse livro ele descreve a agonia de sua passagem do “homem velho” para o “homem novo”. É uma humilde confissão das misérias humanas e uma deslumbrante apoteose da misericórdia divina. Os problemas fundamentais que o preocupavam eram os problemas práticos e morais: a origem do mal, a liberdade, a graça, a predestinação, sendo a sensualidade, no seu pensar, uma das maiores conseqüências do pecado original.
Apesar de ter vivido entre os anos 354 e 430 da era cristã, nos primórdios da Idade Média, seus pensamentos transparecem, mais de mil e quatrocentos anos depois, na elaboração e nas mensagens que compõem a codificação espírita.
Na mensagem do item 19, contida no Capítulo V do Evangelho Segundo o Espiritismo – Bem aventurados os aflitos – Santo Agostinho discorre sobre as causas das aflições e do sofrimento e prescreve o remédio para combatê-los. Apresenta um tema que o impressionava profundamente: o mal, que após estudos e experiências pessoais, acaba acreditando ser a ausência do bem.
Nesse texto se manifestam, com impressionante clareza, alguns de seus pensamentos. Agostinho não podia suportar a idéia de que Deus fosse a causa do pecado, por isso afirma que Deus não nos induz a cometer o mal, mas nos dá a liberdade para escolher entre o bem e o mal.
Na psicologia agostiniana, o corpo não é mau por natureza, pois a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez todas as coisas boas. No homem a vontade é livre, portanto, pode querer o mal, pode agir indisciplinadamente contra a vontade de Deus. Quando isso acontece, a alma se torna escrava do corpo, o que faz da Terra lugar de sofrimento e dor. Quando se afasta de Deus, o homem experimenta o mal.
A idéia de que Deus criou só o bem e de que o mal surge da desobediência do homem, está presente no início da mensagem: “Vossa Terra é, pois, um lugar de alegria, um paraíso de delícias? A voz do profeta não ressoa mais aos vossos ouvidos? Ele não apregoou que haveria pranto e ranger de dentes para aqueles que nascessem nesse vale de dores? Vós que viestes aí viver, esperai pois lágrimas cruciantes e penas amargas, e mais vossas dores sejam agudas e profundas, olhai o céu e bendizei o Senhor por ter querido vos experimentar!”
Podemos encarar o sofrimento não como castigo de Deus, mas como experiências que burilam o nosso espírito. Assim, tudo o que nos acontece é um recado, uma advertência da vida para que equilibremos nosso mundo interior. A chegada do desespero é uma forma de nos avisar que esses problemas que nos atormentam estão clamando por soluções, que somente nós mesmos podemos dar.
Lourdes Catherine, no livro Conviver e Melhorar afirma que: “A dor é, em si mesma, benéfica e tem por objetivo conduzi-lo ao equilíbrio. Se você pudesse perceber por si próprio os erros que está cometendo e corrigi-los, não haveria necessidade de atravessar rigorosas lições de sofrimento. Logo, sofrer não é castigo, é aprendizagem”. Continua ela: “A questão é que você não quer aprender, mas unicamente livrar-se dos problemas, sem esforço e de forma milagrosa. Você quer prêmios e concessões divinas na prática de ações bondosas, não equilíbrio e entendimento”.
Seguindo o texto evangélico, Santo Agostinho nos mostra que Deus é saber e amor. Deus é capaz de apontar nossos pecados, perdoá-los e ainda nos ensina a não praticar ações más e indignas. Cometemos todos e quaisquer pecados que desejamos, pois nossa vontade é livre, sem medir as conseqüências. Muitas vezes, a vida nos traz maus momentos para que possamos refletir sobre atos anteriores. Nesse contexto pode ser enquadrado o ditado popular: "Há males que vêm para o bem". Às vezes aprendemos o bem somente quando sofremos uma fatalidade na vida; e mesmo assim, Deus nos perdoa sempre.
Hammed, em Renovando Atitudes , define culpa como “paralisação das nossas oportunidades de crescimento no presente em conseqüência da nossa fixação doentia em comportamentos do passado”. Esclarecendo ainda mais a questão, continua: “quem se sente culpado se julga em pecado”, pois ainda algumas religiões utilizam a culpa como uma maneira de dominar seus fiéis. “Todavia”, prossegue Hammed, “olvidam que o Criador da Vida é infinita bondade e compreensão e que sempre nos vê com os “olhos do amor”; e portanto, nunca pune suas criaturas, mas sim, na realidade, são elas mesmas que se autopenalizam, por não se renovarem nas oportunidades do livre-arbítrio, e por ficarem agarradas aos erros do passado, no presente”.
Na mensagem, Agostinho nos conclama a mirar no exemplo de Jesus, pois no seu ideário, foi Cristo, através de sua redenção, que remediou o mal moral da humanidade, restituindo-lhe os dons divinos e a possibilidade do bem moral. Hammed, na obra já citada, refere-se a Jesus como “Preceptor da almas, levou-nos à reflexão íntima, ou melhor, à interiorização de nós mesmos, quando assegurou “eu estou no Pai e o Pai está em mim” , formalizando assim toda uma necessidade do nosso autoconhecimento, como base vital para alcançarmos o Reino dos Céus”.
Na filosofia agostiniana o homem é um ser espiritual, que possui um corpo físico que pertence ao mundo físico, mas também possui uma alma capaz de reconhecer Deus. Na mensagem do Evangelho, Agostinho nos exorta a olhar além do horizonte finito que nossos olhos podem alcançar; a ver o nascimento e a morte como etapas do processo natural da vida. Dessa forma, tudo na vida é provisório, uma fase sucede a outra e o mal não dura infinitamente.
E qual o remédio que Agostinho prescreve para todos os males? Para se chegar a essa resposta, vamos seguir a trajetória do seu raciocínio. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual, tirando daí uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Além disso, admite Agostinho, tanto os sentidos como o intelecto são fontes de conhecimento. E, se para se ter uma visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, ou seja, a fé. Para ele, conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio dessa luz intelectual.
Citando ainda Hammed, eis como define a fé: “o sentimento instintivo que nasce com o espírito. É crença inata, impulso íntimo fundamentado na “certeza absoluta” de que o Poder divino em toda e qualquer situação está sempre nos promovendo, e ampliando cada vez mais nosso crescimento pessoal”.
Apesar de termos sido criados com o sentimento instintivo da fé, caminhamos da imaturidade à maturidade, percorrendo um longo caminho para desenvolvê-lo plenamente. Não passamos a ter fé de um momento para outro. Nenhum acontecimento inesperado acende nossa fé. A fé plena não é uma conquista repentina, mas trabalho desenvolvido e assimilado ao longo do tempo.
Também a conversão de Agostinho não foi uma atitude súbita. Apesar de ter ocorrido em um momento de intenso desespero que lhe incendiava a alma, através da audição da voz de uma criança que lhe dizia para ler determinado livro e abrindo-o, ao acaso, sentiu-se iluminado pelas palavras que lera, “processou-se gradativamente, como resultado de uma série de impressões e descobertas cada vez mais iluminadoras. (...) Ele não passou da incredulidade à fé, mas simplesmente resolveu por em prática os preceitos da fé. Foi um acontecimento de natureza ética e não propriamente de natureza mística”. Ao receitar a fé como remédio para o mal, Santo Agostinho procura nos persuadir dessa força que reside em nós, convida-nos a colocar nossa vontade a serviço dessa força para realizarmos coisas que, embora os incrédulos possam chamar de milagres, são o desenvolvimento das faculdades que carregamos dentro de nós. Ter fé é confiar em Deus e nas nossas próprias forças que nos foram delegadas por Ele no momento da criação.


Vânia Lopes - Delfos