Os Vira Latas
Desaparecera Nelito, o filhinho do industrial Sérgio Luce.
A família viera da cidade passar o fim de semana no apagado burgo madeireiro. E
Manoel, o pequeno Nelito, de quatro anos, embrenhara-se na mata enorme que
circundava a localidade.
Duas horas longas de expectativa.
A senhora Luce chorava ao pé do marido preocupado. Amigos chegando. Servidores
em movimento. Lá estavam as pessoas mais salientes da vila. O médico, o
sacerdote, o juiz, alguns professores e o antigo advogado, Dr. Nascimento
Júnior, muito conhecido pela sua intransigência religiosa.
Humilde, apareceu também Florêncio Gama, o diretor do templo espírita
recém-fundado.
Misturava-se, em sua roupa surrada, à turba palradora, no grande portão da
entrada, sustendo dois cães arrepiados, em corda curta.
– Florêncio! Florêncio, venha cá!
Era o Dr. Nascimento a chamá-lo. O operário simples, de chapéu na mão e
segurando os cachorros mansos, foi atender.
Talvez desejando humilhá-lo, o causídico pronunciou grande sermão.
Não estimava saber que um templo espírita se erguera.
Respeitava em Florêncio um homem de bem. Trabalhador correto. Ordeiro.
Entretanto, não queria vê-lo nas fileiras espíritas. E acrescentava que os
espíritas não eram cristãos tradicionais. Não tinham classe. Discutiam
livremente o Evangelho do Senhor. E isso lhe parecia desrespeito.
A Doutrina Espírita, a seu ver, constituía desordenado movimento do povo. Sem
pastor visível. Sem qualquer linha aristocrática na direção. Que o amigo lhe
desculpasse. A hora de inquietude não comportava o assunto; contudo, não
conseguia furtar-se ao ensejo.
Florêncio ouviu calado.
Explicou que desejava simplesmente cooperar na busca. E pediu uma roupa usada
pela criança.
A senhora Luce atendeu.
Em seguida, solicitou a presença dos cães que habitavam a casa. Vieram à sala
quatro buldogues solenes, cinco dinamarqueses fidalgos, dois “fox-terrier” e uma
cadelinha “bassé”.
Florêncio deu-lhes a roupa da criança a cheirar, mas não se moveram.
A seguir, repetiu a operação com os dois cãezinhos que o acompanhavam. Latiram,
impacientes.
E libertos correram para a mata, voltando, daí a alguns minutos, ladrando
alegremente.
– “Sigamo-los – disse Florêncio –, tudo indica que a criança foi encontrada.”
Todo o grupo avançou.
Com efeito, em pouco tempo, seguindo os cães, surpreenderam a criança dormindo
num monte de palha seca.
Os animais ganiam, felizes, como quem havia cumprido agradável dever.
Júbilo geral.
Florêncio recolheu os companheiros para a volta, e, dirigindo-se, bem-humorado,
ao Dr. Nascimento, disse-lhe:
– Olhe a lição, doutor. O senhor, decerto, enganou-se ao dizer que a Doutrina
Espírita não possui representantes respeitáveis. Temos, sim. E muitos. Agora,
quanto a sermos uma religião do povo, lembre-se de que os cães de raça, embora
valiosíssimos, ficaram em casa emproados e preguiçosos. Nossos cachorros
anônimos, porém, não hesitaram...
E terminou, contente :
– Conforme o senhor disse, os espíritas podem ser os vira-latas do canil
terrestre, segundo o seu conceito, mas procuram trabalhar, aprendendo a
servir...
Hilário Silva