Falsa Noção
Trago aos leitores página preciosa do estudioso Deolindo Amorim (1906 –
1984), que foi jornalista, sociólogo,publicitário e escritor, nascido na Bahia.
Pelo oportunismo do texto, bem adequado aos dias que vivemos, no quais muitos
nos escondemos em diferentes máscaras e diante da crise moral que se abate sobre
o País, sempre é bom refletir sobre essas questões. Peço ao leitor atenta
leitura, embora a transcrição abaixo seja parcial:
“(...) muita gente pensa que ser humilde é não ter personalidade. O próprio
Cristo, que foi o Cristo, o bom, o justo por excelência, não abriu mão de Suas
ideias, não recuou diante das dificuldades... se Ele não tivesse personalidade,
naturalmente ficaria acomodado à situação e não teria suportado o que suportou
em defesa do ideal que O iluminava.
No entender de muitas pessoas, o que, aliás, está muito errado, ser humilde é
dizer amém a tudo, é ficar bem com todos, ainda que tenha de sacrificar as mais
fortes razões da consciência.
Não foi isto o que o Cristo ensinou. Nem foi isto o que Ele praticou.
Veja-se bem que o Evangelho reprova o procedimento dos que, calculadamente,
ocultam os seus pensamentos, isto é, não dizem o que pensam nem o que sentem,
porque preferem agir na sombra! Tanto é certo que o Cristo valorizava a
personalidade, que ele mesmo disse, e de modo direto, que a criatura deve ser
quente ou fria; ninguém deve ser morno. Que significa isto? Significa ter
personalidade, no mais alto sentido humano e espiritual. Ficar morno é ficar
indeciso, de caso pensado, é não se definir de propósito, para tirar algum
partido próximo ou remoto. Isto, porém, não é procedimento compatível com a
ética cristã. Não tenho receio das pessoas que tomam atitudes francas, para um
lado ou para outro; mas tenho muito cuidado com os que ficam mornos, pois foi
para estes que o Cristo chamou a atenção de Seus seguidores.
Se o Cristo disse que o nosso falar deve ser ‘sim sim’ e ‘não não’, é claro que,
com isto, reconheceu que o homem deve ter personalidade. Vejo e ouço,
constantemente, citar-se o Evangelho, mas também noto que muita gente ainda não
compreendeu o sentido de certas máximas fundamentais do Evangelho. Vou dar um
exemplo disto: quando alguém toma atitude, porque tem personalidade, e não está
conformado com isto ou aquilo, logo se diz que é um antifraternista, que é um
demolidor, etc. Pouco falta para se chamar o companheiro de um herético ou
pecador público, simplesmente porque é sincero, é idealista, e diz o que pensa.
É preciso que se compreenda a situação de cada um de nós, em face da
responsabilidade própria. Tomar uma atitude contra qualquer coisa venha de onde
vier, não quer dizer que se pretenda destruir seja o que for. É agir
sinceramente, de acordo com a consciência. Já é tempo de se acabar com a
suposição ou com o sofisma de que, para praticar a humildade, é necessário
curvar-se a tudo ou abdicar do direito de pensar e falar abertamente. Há, entre
nós, uma noção muito falsa de humildade, para encobrir muita coisa ruim. (...)”
Coincidência ou não, o texto foi publicado em 1964 e parece-nos preciso ser
republicado novamente, face à excessiva valorização de valores transitórios, com
desprezo aos valores reais e morais, aqueles que permanecem..
Orson Carrara