Furto Legal
A expressão que usamos como título parece incoerente, mas é verdadeira: há um
furto permitido por lei, com testemunhas inclusive. É um furto legalizado, no
bom sentido da palavra.
Nestes tempos bicudos de tensão, correria e preocupações, o texto abaixo,
poético, real e suave, auxilia a dar uma trégua nas neuroses do cotidiano.
Acompanhe comigo:
“(…) Há um furto legal permitido por Deus, pelas diversas religiões do globo e
por todos os Códigos dos países cultos ou bárbaros: – consiste em ir alguém a um
lar venturoso, cobiçar um dos seus mais belos ornamentos e usurpá-lo, com o
assentimento dos lídimos possuidores, contentes ou constrangidos. Chama-se
casamento. É como se alguém entrasse num jardim florido e colhesse o mais
precioso espécime, o que mais o deslumbrara, à vista do seu cultivador que, às
vezes, não contém as lágrimas… Acho-me na situação desse egoísta, apreciador dos
tesouros alheios, amigo… Observo a dita mais perfeita no vosso lar abençoado e
venho roubar-vo- la em parte, ou antes, desejo transplantar para o meu, deserto
e entristecido, por falta de um arcanjo doméstico, uma centelha de alegria, de
felicidade, de luz espiritualizante, que as há em abundância no vosso: quero
enfim, meu amigo, permitais a aliança nupcial de Sonia com o meu Henrique… (…)”.
O texto transcrito é a expressão do pai do noivo para o pai da noiva, naqueles
tempos em que os pais escolhiam o casamento para os filhos. Os dois sogros,
amigos entre si, conversavam e um deles, viúvo, e pai do noivo, faz o pedido de
noivado e casamento ao pai da moça. O poético texto está no belíssimo livro Do
Calvário ao Infinito, de Victor Hugo, que narra a impressionante saga de um
personagem cuja vida é repleta de dissabores de toda ordem, mas traz a suavidade
de outra personagem, Sonia, que encanta pela beleza e nobreza de sentimentos.
Realmente os filhos são mesmo pérolas na vida humana. Quando se casam formam a
própria vida, como deve ser mesmo, para construírem sua própria independência ao
lado de outra família, com os desdobramentos próprios que é preciso entender e
apoiar.
Dessa união natural, surgem outros filhos, os chamados netos, que tornam a vida
ainda mais dinâmica e repleta de esperanças e alegrias, fazendo do lar um
verdadeiro laboratório de experiências morais, na educação e no aprendizado.
Vale lembrar: “Desde pequenina , a criança manifesta os instintos bons ou maus
que traz (…). A estudá-los devem os pais aplicar-se. Todos os males se originam
do egoísmo e do orgulho. Espreitem, pois, os pais os menores indícios
reveladores do gérmen de tais vícios e cuidem de combatê-los, sem esperar que
lancem raízes profundas. Façam como o bom jardineiro, que corta os rebentos
defeituosos à medida que os vê apontar na árvore.”
Somente assim, formaremos filhos que mais se parecerão tesouros em flor, com a
moralidade educada, com a postura digna de cidadãos conscientes e responsáveis.
O quadro social que encontramos atualmente, caótico, deselegante, agressivo, é
fruto da indiferença ou omissão dos pais, apesar da bagagem que já trazem os
filhos. Na poesia acima transcrita, na formosura moral de uma jovem, vemos o
papel da educação. Aliás, leitor, leia o livro para encantar-se com a
personagem.
A família é mesmo um laboratório de educação e começa, mesmo considerando a
família anterior, quando dois jovens se unem pelo amor no casamento, formando
uma nova família…
Orson Carrara