O Médico e o Fiscal
— Se possível, acelere um pouco a marcha.
Era o abnegado médico espírita, Dr. Militão Pacheco, que rogava ao amigo que o
conduzia por gentileza.
E acrescentava:
— O caso é crupe.
O companheiro ao volante aumentou a velocidade, mas, daí a momentos, um fiscal
apitou.
O carro atendeu com dificuldade e, talvez por isso, a motocicleta do guarda
sofreu pequeno choque sem conseqüências.
O policial, porém, não estava num dia feliz e o Dr. Pacheco com o amigo
receberam uma saraivada de palavrões.
Notando que não reagiam, o funcionário fez-se mais duro e declarou que não se
conformava apenas com a multa.
Os infratores estavam detidos.
O Dr. Pacheco deu-lhe razão e informou que realmente seguiam com pressa para
socorrer um menino sem recursos, rogando, humilde, para que a entrevista com a
autoridade superior fosse adiada.
— Se o senhor é médico — disse o interlocutor, com ironia —, deve proceder
disciplinadamente, sem sair do regulamento. Para ser franco, se eu pudesse,
meteria os dois, agora, no xadrez.
Embora o amigo estivesse rubro de indignação, o Dr. Pacheco, benevolente, fez
uma proposta.
O guarda deixaria, por alguns instantes, o veículo, e seguiria com eles no
carro, mantendo vigilância.
Depois do socorro ao doentinho, segui-lo-iam para onde quisesse.
Havia tanta humildade na súplica, que o fiscal concordou, conquanto repetisse
asperamente os insultos.
— Aceito — exclamou —, e verificarei por mim mesmo. Ando saturado de vigaristas.
E creio que, se estão agindo com mentira, hoje dormirão no Distrito. A
motocicleta foi confiada a um colega de serviço e o homem entrou, seguindo em
silêncio.
Rua aqui, esquina acolá, dentro em pouco o carro atingiu modesta residência na
Lapa, em S. Paulo.
Os três entram por grande portão e caminham até encontrar esburacado casebre nos
fundos.
Mas, ao ver o menino torturado de aflição nos braços de infeliz mulher, o bravo
fiscal, com grande assombro dos circunstantes, ficou pálido e com os olhos rasos
de água.
O petiz agonizante e a jovem senhora sem recursos eram seu próprio filhinho e a
sua própria esposa que ele havia abandonado dois anos antes...
Hilário Silva