Nem Prata, Nem Ouro, Mas ...
Pairavam, na memória dos discípulos de Jesus, o doce
encantamento das experiências ao Seu lado e as cruas quão dilacerantes cenas da
Tragédia.
Reconfortados pela Sua ressurreição, cantavam-lhes nas almas as festivas
reminiscências dos reencontros com o Amigo redivivo, em exuberante vitalidade,
que nunca mais desapareceria das suas existências.
O palco imenso da rude e ingrata Jerusalém, onde se desenrolaram os
acontecimentos quase inexplicáveis que o Gólgota exibira em hediondez e o túmulo
não silenciara em sombras, agora era novo cenário, no qual ocorrências
diferentes e multiplicadas aconteciam.
As notícias do retorno do Mestre produziram diferentes reações, como seriam de
esperar-se: alegria e curiosidade nas massas, medo e perversidade nos culpados.
Desejando silenciar a Voz da Verdade, tomaram-na mais potente; pretendendo matar
o Cantor, fizeram-nO mais vivo e objetivando anular-Lhe a mensagem abriram mais
amplo espaço para fazê-lA ouvida.
Uma sucessão de eventos ditosos impediu que o esquecimento geral sepultasse a
melodia de libertação do Conquistador Celeste, o que sacudia continuamente a
opinião nas praças e assustava os habitantes soezes dos palácios e dominadores
do Templo.
Jesus prosseguia vivo na memória geral e atuante em toda parte.
Fora visto em diferentes lugares, e os testemunhos eram insuspeitos.
Uma aragem perfumada espraiava-se pelas diferentes regiões e nelas Ele retomava,
dialogando, cumprindo o anúncio da sobrevivência.
Ninguém, nem nada pudera detê-lO.
O ódio, que envilece, também cega; igualmente intoxica, e alucina.
O assassinato do Justo não bastara para os criminosos, que, desejando fazê-lO um
traidor, criaram um mártir, planejando maculá-lO, desnudaram-Lhe a pureza, e
crendo aniquilá-lo, abriram-Lhe as portas fantásticas da imortalidade com que
confirmava todos os ditos e feitos.
A orgulhosa e fria Jerusalém fora erguida com pompa, e o seu Templo, sobre o
monte Moriá, constituía o máximo da glória de Israel, que se ufanava do Deus
único, embora subjugada pela águia romana, em cujas garras o mundo conhecido se
debatia e estertorava.
A política vil e a ganância arbitrária se misturavam nas disputas governamentais
dos poderes civil e militar, entregues aos romanos, e religioso, nas mãos hábeis
dos sacerdotes, na sua maioria, inescrupulosos.
O poder e a miséria mesclavam-se, trocavam de lugar, qual ocorre ainda hoje.
Os átrios e a entrada do Templo suntuoso, desafiador, majestoso e extravagante
nas ornamentações com que Salomão o engrandecera, após a sua construção por
Zorobabel, e posterior destruição, permaneciam repletos de miséria: a moral —
dos cambistas e vendedores; a mental — dos alucinados; a orgânica — dos
enfermos; a econômica —dos pobres; a ociosa — dos desocupados e aventureiros.
No seu interior, entre liturgias e cerimoniais, a face gelada da religião formal
confundia o temor a Deus e o ódio aos romanos, a indiferença pelas criaturas e a
astúcia para manter o domínio sobre as consciências adormecidas.
Os perfumes rituais exalavam dos incensórios e trípodes espalhados por todos os
lados, confundindo-se com a sudorese do poviléu e suas chagas abertas.
O país, porém, e a cidade, acorriam com a assiduidade exigida aos cultos que ali
se celebravam, conforme o calendário estabelecido. Além dos dias festivos, que
celebravam o cativeiro ou a libertação, o sofrimento no deserto ou as concessões
divinas, também se apresentavam os ofícios habituais expostos pela Lei.
Foi num dia comum, igual a outro qualquer, ante as atividades da cidade febril e
a monotonia da realização religiosa, que Pedro e João, dando prosseguimento à
obediência exigida pela Tradição, subiram ao Templo para a oração da hora nona.
Esfervilhavam nas suas mentes as recordações de Jesus e a sinfonia das Suas
palavras marcava os movimentos e o pulsar dos sentidos e do coração.
Os infelizes desfilavam suas misérias e as dores exibiam suas exulcerações.
Quase à Porta Formosa, rica de adornos, entrada especial para o interior das
imponentes edificações do Templo, um coxo de nascença que era trazido ali para
mendigar, vendo que eles iam entrar, implorou-lhes que lhe dessem esmola.
A esmola sempre foi um recurso da indignidade humana, que afronta aquele que a
recebe e toma mesquinho quem a oferta.
Jesus subverteu-a, oferecendo o amor que dignifica e que liberta.
Pedro, recordando-se do Divino Médico e Benfeitor, tomado de compaixão, disse ao
solicitante:
— Olha para nós.
Supondo que ia receber as migalhas habituais, o mendigo dirigiu-lhe o olhar e
foi surpreendido com a dádiva incomum: — Não tenho prata nem ouro para te dar —
esclareceu o Apóstolo — mas o que eu tenho dou-te: em nome de Jesus, o Nazareno,
anda!
Aconteceu muito rápido. Relâmpago que fere a noite escura e cinde-a, os fatos
atropelaram-se para espanto geral.
Tomando-o pela mão direita o levantou; logo os seus pés e artelhos se firmaram;
e, dando um salto, pôs-se de pé e começou a andar.
Ato contínuo, cantando louvores, ele entrou no Templo com os dois, andando e
exaltando Deus.
Como era natural, a estupefação tomou conta das pessoas, que conheciam o pedinte
da Porta Formosa, agora recuperado. Tomadas de espanto, acorreram a informar-se
do acontecido.
Instaurava-se em definitivo o amanhecer da Nova Era.
O arrependido das negações erguia-se para demonstrar que o amor é a terapia por
excelência e a misericórdia é a companheira que balsamiza todas as chagas da
vida e do coração.
A Humanidade possui prata e ouro em abundância e misérias morais em quantidade.
Poucos distribuem esses valores e perdem-se entre os celerados, os carentes
morais do mundo.
Alguns se liberam dessa escravidão e repartem um pouco.
Os verdadeiros cristãos, no entanto, que não possuem os tesouros que se gastam,
se roubam, se perdem, despertam disputas e paixões, oferecem o que têm,
distendem e promovem a criatura, impulsionando-a para a felicidade, para
caminhar por si mesma no rumo da libertação.
Não doam coisas — doam-se.
Não possuem moedas, mas amor.
—Nem prata, nem ouro, mas...
Amélia Rodrigues