Ouro e Batatas
I
João Peres, prestimoso amigo do Plano Espiritual, estava de volta à esfera dos
homens.
Tudo pronto para o renascimento. E porque desfrutasse merecidos afetos, era como
bênçãos de luz a festa das despedidas.
- Tornarei, sim – dizia bem humorado -, e espero vencer agora.
Indagou alguém se estava informado quanto ao pretérito, ao que respondeu
generoso:
- Conservo a memória voltada para certo período – e modificando a expressão
fisionômica: Tinha eu trinta anos de idade, em Taubaté, quando foi promulgada a
lei de 18 de abril de 1702, sob o nome de “Regimento dos Superintendentes,
Guarda-Mores e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro”, com que o cetro
português procurava incentivar a mineração no Brasil. Cada minerador, com mais
de 12 escravos poderia receber uma data com 900 braças quadradas, ou seja, 4.356
metros quadrados. Vendi a propriedade que herdara, sozinho, de meus avós, e
rumei para Vila Rica. Instalado nas vizinhanças de São João Del Rei, consegui
catorze cativos e comecei meu trabalho. Cobiçoso, não mentalizava senão ouro,
ouro, ouro... Mas enquanto companheiros diversos prosperavam, felizes, não
encontrava por mim senão cascalho e desilusão. Mourejando de sol a sol, a pouco
e pouco me desencantei. Trinta anos vivi ali a loucura do ouro. Ouvi a fama das
minas de Cuiabá. Entreguei o pedaço de terra ao meu primo Martinho Dantas e
abalei-me, com dois escravos, para a viagem temível.Tudo começou às mil
maravilhas, mas fomos desviados da rota e, a tempo breve, achávamo-nos sem
caminho, em pleno deserto verde. A seca atacava tudo. E caí doente, fatigado,
febril. Na segunda noite de maiores dificuldades, Juvenal e Sertório entraram em
fuga, levando-me víveres e cavalos. No delírio que me assaltava, senti fome...
Cambaleei por dois dias, como bêbado solitário, procurando comer... Mastigando
folhas amargas que me impunham tremenda salivação, arrastei-me, arrastei-me, até
que, ao pé de uma fonte, vejo pequena bolsa, recheada com algo... Tremo de
esperança. Alguém teria deixado ali algum resto de refeição. Abro o saquitel e
contemplo uma farinha dourada. Semi-enlouquecido, encho a boca, como quem
encontra os remanescentes de uma farofa gorda. E bebo água, muita água, para
morrer depois em pavoroso suplício, porque nada mais fizera que comer ouro em
pó.
II
Peres interrompeu-se.
Todavia alguém pede mais. Encerra então a carreira?
- Não – disse ele, sorrindo -, ao pé da própria carcaça, invadida de pó valioso,
demorei-me por tempo indeterminado. Se dormindo, não sei. Se acordado, ignoro.
Mas sei que vivi pesadelo incessante em que via barras de ouro, pepitas de ouro,
lâminas de ouro e caixas de ouro... Quando essa loucura encontrou alívio,
pus-me, em espírito, no movimento da retaguarda. Muito tempo havia passado,
porque o próprio Martinho não mais achei. Morrera, próspero, deixando larga
fortuna aos filhos. A terra que eu lhe emprestara abrira-se, enfim, mostrando o
seio aurífero. Reclamei meus direitos e bramei contra o mundo, sem que ninguém
me ouvisse, até que, um dia, por bondade de Deus, dormi, tudo esquecendo...
Renascera entre os bisnetos de meu primo e, desde de cedo, ansiando a pose de
ouro, aprendi a comerciá-lo. Viajava entre Sabará e São João Del Rei sem medir
sacrifícios. Entretanto aspirando à riqueza fácil, estimulei nos escravos o
gosto do furto. Quanto me pudessem oferecer tinha preço. E aumentei meus
negócios. Atravessava de novo a casa dos sessenta anos, quando a clandestinidade
dos meus serviços escusos foi revelada. Dispunha, no entanto, de enorme fortuna
em ouro e consegui escapar ao processo, subornando funcionários e consciências.
Policiado, no entanto, resolvi retirar-me. Buscaria o território baiano e, por
lá, tomaria medidas novas. Mudaria meu próprio nome. Depois, desceria por mar,
rumo ao sul. Na Corte, poderia desfrutar vida farta. Tomei tropas. Viajei
garantido. Servidores numerosos. Carga volumosa e pesada. Na travessia do S.
Francisco, exigi que as minhas duas grandes malas de ouro me acompanhassem. “É
muito peso” – disse o barqueiro, sensato. Mas exigi. Ele e eu, com a carga, ou
nada feito. O homem aceitou, mas a pleno rio, surgem correntes mais fortes. O
barco oscila. Vai-se a primeira mala. Tento retê-la e cai a segunda. Gritando, à
feição de louco, mergulho nas profundas águas, perdendo de novo a vida...
Peres fitou-nos, pensativo, e ajuntou:
- Desde então, sofri merecidos horrores para aprender...
- E agora, Peres? – Perguntou, intrigado, um amigo que também se dispunha à
reencarnação.
O ex-garimpeiro e comerciante levantou-se e atendeu:
- Agora será diferente. Volto ao meu torrão antigo em S. Paulo e vou plantar
batatas.
E, sorrindo, concluiu:
- É muito melhor.
Hilário Silva