Em Torno da Paz
O relógio tilintou, marcando oito horas, quando Anacleto Silva acordou na
manhã clara. Lá fora, o Sol prometia calor mais intenso e a criançada
disputava bagatelas como vaga chilreante de passarinhos.
Anacleto estirou-se no leito, relaxando os nervos, e, porque iniciaria o
trabalho às nove, antes de erguer-se tomou o Evangelho e leu nos
apontamentos do Apóstolo João, capítulo catorze, versículo vinte e sete, as
sublimes palavras do Celeste Amigo:
A paz vos deixo, a minha paz vos dou. Não vo-la dou à maneira do mundo. Não
se turbe o vosso coração, nem se atemorize.
- “Alegro-me na certeza de que a paz do Senhor envolve o mundo inteiro. Onde
estiver, receberei o amor do Cristo, que assegura a tranquilidade, em torno
do meu caminho. Sei que a presença de Jesus abrange toda a Terra e que a sua
influência nos governa os destinos. Desfrutarei, assim, a paz entre as
criaturas.
O Eterno Benfeitor está canalizando todas as mentes para a vitória da paz.
Por isso, ainda mesmo que os homens me ofendam, neles procurarei enxergar
meus irmãos que o Divino Poder está transformando para a harmonia geral.
Regozijo-me na convicção de que o Príncipe da Paz orienta as nações e que,
desse modo, me garantirá o bem-estar. Recolherei do Céu a bênção da calma e
permanecerei nos alicerces do entendimento e da retidão, junto da
Humanidade. Louvo o Senhor pela paz que me envia hoje, esperando que Ele me
sustente em sua paz, agora em todos os dias de minha vida.”
Após monologar, fervoroso, levantou-se feliz, mas, findo o banho rápido,
verificou que a fina calça com que lhe cabia comparecer no escritório
sofrera longo corte de faca.
Subitamente transtornado, chamou pela esposa, em voz berrante.
Dona Horacina veio, aflita, guardando nos braços uma pequerrucha doente. Viu
a peça maltratada e alegou, triste: - Que pena! Os meninos estão à solta, e
eu ocupada com a pneumonia da Sônia.
Longe de refletir na grave enfermidade da filhinha de meses, Anacleto
vociferou:
- Que pena? é tudo o que você encontra para dizer? Ignora, porventura, que
esta roupa me custou os olhos da cara?
A senhora, sem revidar, dirigiu-se a velho armário e trouxe-lhe um costume
semelhante ao que fora dilacerado.
Pouco depois, ao café, notando a ausência do leite, Anacleto reclamou,
irritadiço.
- Sim, sim – explicou a dona da casa -, não pude enfrentar a fila... Era
preciso resguardar a pequena...
Silva engoliu alguns palavrões que lhe assomavam à boca e, quando abriu a
porta, na expectativa do lotação, eis que o sogro, velhinho, lhe aparece, de
chapéu à destra encarquilhada, rogando, humildemente:
- Anacleto, perdoe-me a intromissão; contudo, é tão grande a nossa
dificuldade hoje em casa que venho pedir-lhe quinhentos cruzeiros por
empréstimo...
- Ora, ora... – respondeu o genro, evidenciando cólera injusta – onde tem o
senhor a cabeça? Se eu tivesse quinhentos cruzeiros no bolso, não sairia
agora para encarar a onça da vida.
Nisso um carro buzinou à reduzida distância, passando, porém, de largo, sem
atender-lhe ao sinal.
- Malditos! como seguirei para a repartição? Malditos! malditos!...
Outro carro, no entanto, surgiu rápido, e Silva acomodou-se, enfim.
Mas, enquanto o veículo deslizava no asfalto, confrontou a própria conduta
com as afirmações que fizera ao despertar, e só então reconheceu que ele,
tão seguro em exaltar a harmonia do mundo, não suportara sem guerra uma
calça rasgada; tão convicto em prometer a si mesmo o equilíbrio no Senhor,
não se conformara ante a refeição incompleta; tão pronto em proclamar o seu
prévio perdão às ofensas humanas, não soubera acolher com gentileza a
solicitação de um parente infeliz, e tão solene em asseverar-se nos
alicerces do entendimento, não hesitara em descer da linguagem nobre para a
que condiz com a gíria que amaldiçoa... E, envergonhado por haver caído tão
apressadamente da serenidade à perturbação, começou a perceber que, entre
ele e a Humanidade, surgia o lar, reclamando-lhe assistência e carinho, e
que jamais receberia a paz do Cristo por fora, sem se dispor a recolhê-la
por dentro.
Irmão X