Um Legislador da Pesada
Era temido legislador. Instituiu castigos terríveis. Pior: cometeu injustiças
inomináveis, como se não soubesse o fundamental – a pena não pode ultrapassar a
natureza do crime.
Dois homens se atracam. A mulher de um deles entra na briga. Estouvadamente pega
nas vergonhas do adversário, mais exatamente o membro viril e acessórios. O caso
vai parar na justiça. É exagerada a sentença, com base no código inflexível: Que
lhe sejam cortadas as mãos.
Cáspite! Isso é pura crueldade! Jamais um ato de justiça!
Certamente o leitor desavisado dirá: – Legislador maluco!
Se você pensar assim, estará cometendo uma heresia, porquanto essa sentença está
na Bíblia, no Velho Testamento (Deuteronômio, 25:11-12). É atribuída a Jeová, o
deus judeu, promovido pelos teólogos cristãos a supremo senhor do Universo.
Por isso, fico pasmo quando se fala que a Bíblia é a palavra de Deus.
Literalmente está se pretendendo que o Eterno inspirou tais sandices.
Há outras preciosidades:
No mesmo capítulo, do citado Deuteronômio, (5-10), Jeová determina que se um
homem morrer sem deixar descendência seu irmão deverá casar-se com a viúva.Se
recusar, será levado aos anciãos. Se insistir em não cumprir seu dever, ela
cuspirá em seu rosto, tirará as sandálias de seus pés e seu lar passará a ser a
casa do descalçado. Diríamos do “desgraçado”, certamente o mal menor,
considerada a possibilidade de que a cunhada fosse mais velha, de parcos
atrativos e fartas rabugices…
Em Reis (2:23-25), crianças peraltas caçoaram da calvície do profeta Eliseu.
Digamos que o provocaram gritando, a respeitável distância: – Careca! Careca!
“Piedosamente”, Eliseu evocou a ira divina sobre os pirralhos. Imediatamente
Jeová providenciou o castigo: duas ursas saíram de bosque próximo e despedaçaram
quarenta e dois meninos.
A agressividade do deus bíblico faz-se sentir em toda sua pujança, em Josué
(10:36-43): Assim feriu Josué toda aquela terra, a região montanhosa, a Neguebe,
as campinas, e as descidas das águas, e a todos os seus reis. Destruiu tudo o
que tinha fôlego, sem deixar sequer um, como ordenara o senhor deus de Israel.
Esse tudo o que tinha fôlego abrangia homens, mulheres, velhos, crianças,
animais, peixes, pássaros… todos os seres vivos!
Nem Hitler (1889-1845), Stalin (1879-1953) e Átila (406-453) juntos seriam tão
cruéis.
Diz Mark Twain (1835-1910): “O que me incomoda na Bíblia não são os trechos que
não compreendo. São justamente os que compreendo”. O notável escritor americano
está certíssimo.
Impossível aceitar que tantas tolices, ingenuidades, sandices, maldades e
violências possam ser atribuídas aos humores de um deus não muito certo do que
faz e do que quer, tanto que, em dado momento, como está em Gênesis, capítulo 6,
arrependeu-se de ter feito o Homem.
É isso mesmo, caro leitor! O Eterno decidiu acabar não só com a raça humana, mas
com todas as formas de vida, promovendo um dilúvio universal.
Não fosse Noé cair em suas graças e receber autorização para construir a arca,
certamente você não estaria lendo estas linhas.
Não quero sugerir que devamos menosprezar a Bíblia. Simplesmente, devemos
colocá-la em sua dimensão exata: não um livro divino, mas um repositório das
lendas, tradições e costumes do povo judeu.
Devemos analisá-la em seu contexto histórico, separando o joio do trigo, sem
medo de descartar o que não receba a aprovação da razão.
Então aproveitaremos melhor a leitura, extraindo, tanto do Novo quanto do Velho
Testamento, o que há de bom, produtivo e edificante, não a palavra de Deus, mas
de homens que, em determinado momento, superaram as fragilidades humanas,
oferecendo-nos flashs de espiritualidade.
Nesse contexto, o destaque está com Jesus, o único Espírito em trânsito pela
Terra com elevação suficiente para situar-se em comunhão com Deus e nos oferecer
uma visão mais ampla da vontade celeste.
Revogando sutilmente tudo o que até então se atribuíra ao verbo divino, Jesus
sintetiza a orientação ideal em dois mandamentos singelos, suficientes para
edificar o sonhado reino divino, de justiça, paz e concórdia entre os homens: O
amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Richard Simonetti