O Acidente Providencial
Martinho Sousa era rapaz inteligente, muito culto, mas excessivamente
confiado a idéias fixas.
Após firmar esse ou aquele ponto de vista, não cedia a ninguém no campo da
opinião. Renovava os pareceres que lhe eram peculiares somente à força de fatos
e, assim mesmo, apenas quando os acontecimentos lhe ferissem os olhos.
Declarava-se absoluto nas interpretações e, rebelde, brandia pesada argumentação
sobre quantos lhe não aderissem ao modo de ver.
Dentro de semelhantes características, foi colhido na trama sutil de terrível
obsessão.
A influenciação deprimente das entidades infelizes envolveu-lhe o campo mental
em rede extensa de vibrações perturbadoras. E o desequilíbrio psíquico progrediu
singularmente, senhoreando-lhe o sistema nervoso.
O desventurado amigo começou por abandonar o trabalho diuturno, recolhendo-se ao
ambiente domestico, onde se consagrou ao exame particularizado do próprio caso,
enquanto se alarmavam a esposa e os filhos pequeninos do casal...
Martinho alimentava conversações estranhas, gesticulava a esmo, esbugalhava os
olhos como se fixasse horrendas paisagens, dominado de incoercível pavor.
Não chegava a identificar as sombras que o cercavam, ameaçadoras e inflexíveis
na perseguição sem tréguas; no entanto, assinalava-lhes a presença e
captava-lhes os pensamentos sinistros, em forma de cruéis sugestões.
Atacado de insônia insistente, não se aquietava senão durante alguns minutos,
pela madrugada, para o descanso corporal, gastando as horas em movimentação
anormal e excitante, através dos aposentos, ao jardim e do quintal, errando
sempre, obcecado por invisíveis malfeitores.
De quando em quando, alguém comentava a situação, convidando-o a estudar a
suposta enfermidade, à luz do Espiritismo renovador, mas o teimoso doente se
retraía nas interpretações científicas.
Tratava-se, dizia ele convicto, de choques sucessivos no sistema nervoso,
agravados por uma avitaminose significativa. Além disso, acrescentava, padecia
enorme deficiência no pâncreas. Não se lhe processava a nutrição com a
regularidade devida e via-se esgotado em vista da assimilação imperfeita.
Os companheiros de luta, interessados em seu bem-estar, não conseguiam
demovê-lo.
O obsidiado tecia longas considerações de natureza técnica e relacionava
diagnósticos complicados.
Lia, atencioso, as anotações médicas, referentemente aos sintomas que lhe diziam
respeito e, para refutar os amigos, trazia à conversação, exasperado e
irritadiço, textos e gravuras de natureza científica para exaltar os próprios
males. Agravava-se-lhe o tormento dia a dia.
Assim, atingira Martinho perigosa posição mental.
Os adversários de sua paz subtraíram-no, quase totalmente, à alimentação e
acentuaram-lhe as preocupações na vigília enfermiça.
Horas a fio mantinha-se na estranha contemplação de paisagens horríveis, na tela
escura do pensamento atormentado.
Piorando-se-lhe a situação, os benfeitores espirituais, que por ele se
interessavam, multiplicaram recursos de salvação, mobilizando novos
colaboradores encarnados, de maneira indireta, que passaram a visitar o enfermo
por verdadeiros emissários da solução indispensável.
Eram portadores de consolação, remédio, esclarecimento e luz; entretanto, o
doente não se abria ao socorro que se lhe dispensava.
Bastaria escutar calmamente a leitura de algumas páginas espiritualizantes e
encontraria em si mesmo o recurso à reação; todavia, negava-se ele, impaciente e
menos delicado.
– Influências de ordem psíquica? – indagava, exaltado, aos visitantes – é
rematada maluquice de vocês. Sou vítima de exaustão geral por falta de
suprimento vitaminoso adequado. Estou arrasado. Tenho o fígado apático, os rins
intoxicados e os intestinos inertes...
E estendendo o braço magríssimo, na direção dum velhinho prestimoso que o
visitava com freqüência, exclamava, estentórico:
– E o senhor, “seu” Luís, ainda me vem falar de atuação do outro mundo?! Não
será ironia de sua parte?
Silenciavam os circunstantes, desapontados.
Luís Vilela, o ancião citado nominalmente pelo enfermo, traduzindo o pensamento
de abnegados mentores invisíveis, retrucava sem irritação:
– Deveria você, Martinho, acalmar-se convenientemente para o exame das
necessidades próprias. Como julgar, com tanto rigor, princípios edificantes e
curativos que você absolutamente não conhece? Não devemos condenar sem base
firme.
Não sabe a quantos distúrbios pode ser conduzido um homem, sob perseguições
ocultas. Sei que o seu estado de agora impede a leitura meditada; entretanto,
proponho-me a ler para os seus ouvidos e a prestar os esclarecimentos que se
fizerem indispensáveis. Creio aprenderá você, desse modo, a consolidar as
próprias energias e a refletir com mais clareza, repelindo as sugestões
inferiores, mesmo porque, meu amigo, em qualquer processo de remediar a saúde do
corpo, é imperioso sanear a mente.
O rebelde obsidiado, porém, não atendia. Não se detinha convenientemente nem
mesmo para registrar as considerações de ordem afetiva. Andava, nervosamente,
dum lado para outro, torcendo as mãos ou gesticulando sem propósito, gritando
blasfêmias e queixas. Não aparecia recurso com que se pudesse sossegá-lo no
leito.
Quase desalentados, consultavam-se os amigos entre si.
E não só no círculo dos encarnados sobravam as preocupações. Os enfermeiros
espirituais partilhavam aflições e receios. Martinho não oferecia campo adequado
ao entendimento e, por essa razão, os algozes intangíveis ganhavam terreno
franco.
Prosseguia o perigoso impasse, quando, certa noite, um dos verdugos sugeriu ao
doente a idéia de galgar a velha mangueira do quintal, no sentido de respirar
atmosfera mais pura.
O doente assimilou a idéia, encantado, sem perceber que o inimigo intentava
precipitá-la ao solo, em queda espetacular.
Recebeu o alvitre capcioso e gostou.
Aguardaria as primeiras horas da madrugada, quando a pequena família descansasse
nos domínios do sono. Procuraria o ar rarefeito na copa da árvore antiga.
Possivelmente conquistaria forças novas ao contacto das mais altas correntes
atmosféricas.
Reconhecendo-lhe a disposição firme na execução do projeto, alguns colaboradores
espirituais buscaram o diretor de suas atividades, a fim de traçarem normas para
socorro urgente.
O chefe, contudo, ponderou, muito calmo:
– Não podemos violentar o nosso Martinho no que se reporta à preferência
individual. Se ele estima a orientação dos que lhe tramam a perda, como evitar
que sofra as conseqüências justas?
Deixemo-la confiar-se à dolorosa prova. Talvez esteja dentro dela a chave da
solução que ambicionamos.
Efetivamente, ao raiar do dia, o enfermo sofreu desastrosa queda de grande
altura, após escalar, facilmente, a velha mangueira escorregadia e muito alta.
Aos gritos de dor, foi socorrido pelos familiares e companheiros inquietos. Em
seguida, veio o médico que o amarrou no leito para a restauração de ambas as
pernas quebradas.
Foi então que Martinho Sousa, imobilizado no gesso, pôde ouvir a leitura
reconfortante de Luís Vilela, partilhar os serviços de oração e receber passes
curativos, libertando-se da obsessão terrível e insidiosa.
Transcorridas algumas semanas, quando conseguiu locomover-se, era outro homem.
Sua queda da mangueira fora o remédio providencial.
Irmão X