O Que é a Desgraça
Para apreciar os bens e os males da existência, para saber em que consiste a
verdadeira desgraça, em que consiste a felicidade, é necessário nos elevarmos
acima do círculo acanhado da vida terrena. O conhecimento do futuro e da sorte
que nos aguarda permite medir as conseqüências dos nossos atos e sua influência
sobre os tempos vindouros.
Observada sob este ponto de vista, a desgraça, para o ser humano, já não é mais
o sofrimento, a perda dos entes que lhe são caros, as privações, a miséria; a
desgraça será então tudo o que manchar, tudo o que aniquilar o adiantamento,
tudo o que lhe for um obstáculo. A desgraça, para aquele que só observar os
tempos presentes, pode ser a pobreza, as enfermidades, a moléstia. Para o
Espírito que paira no alto, ela será o amor do prazer, o orgulho, a vida inútil
e culposa. Não se pode julgar uma coisa sem se ver tudo o que dela decorre, e
eis por que ninguém pode compreender a vida sem conhecer o seu alvo e as leis
morais. As provações, purificando a alma, preparam sua ascensão e felicidade; no
entanto, as alegrias deste mundo, as riquezas, as paixões entibiam-na e
atiram-na para uma outra vida de amargas decepções. Assim, aquele que é oprimido
pela adversidade pode esperar e erguer um olhar confiante para o céu; desde que
resgata a sua dívida, conquista a liberdade; porém, esse que se compraz na
sensualidade constrói a sua própria prisão, acumula novas responsabilidades que
pesarão extraordinariamente sobre as suas vidas futuras.
A dor, sob suas múltiplas formas, é o remédio supremo para as imperfeições, para
as enfermidades da alma. Sem ela não é possível a cura. Assim como as moléstias
orgânicas são muitas vezes resultantes dos nossos excessos, assim também as
provas morais que nos atingem são conseqüentes das nossas faltas passadas. Cedo
ou tarde, essas faltas recairão sobre nós com suas deduções lógicas. É a lei de
justiça, de equilíbrio moral. Saibamos aceitar os seus efeitos como se fossem
remédios amargos, operações dolorosas que devem restituir a saúde, a agilidade
ao nosso corpo. Embora sejamos acabrunhados pelos desgostos, pelas humilhações e
pela ruína, devemos sempre suportá-los com paciência. O lavrador rasga o seio da
terra para daí fazer brotar a messe dourada. Assim a nossa alma, depois de
desbastada, também se tornará exuberante em frutos morais.
Pala ação da dor, larga tudo o que é impuro e mau, todos os apetites grosseiros,
vícios e paixões, tudo o que vem da terra e deve para ela voltar. A adversidade
é uma grande escola, um campo fértil em transformações. Sob seu influxo, as
paixões más convertem-se pouco a pouco em paixões generosas, em amor do bem.
Nada fica perdido. Mas, essa transformação é lenta e dificultosa, pois só pode
ser operada pelo sofrimento, pela luta constante contra o mal, pelo nosso
próprio sacrifício. Graças a estes, a alma adquire a experiência e a sabedoria.
Os seus frutos verdes e amargos convertem-se, sob a ação regeneradora da prova,
sob os raios do Sol divino, em frutos doces, aromáticos, amadurecidos, que devem
ser colhidos em mundos superiores.
Livres em nossas ações, isentos de males, de cuidados, deixar-nos-íamos
impulsionar pelo sopro das paixões, deixar-nos-íamos arrebatar pelo
temperamento. Longe de trabalharmos pela nossa melhoria, nada mais faríamos do
que amontoar faltas novas sobre as faltas passadas; no entanto, comprimidos pelo
sofrimento, em existências humildes, habituamo-nos à paciência, ao raciocínio,
adquirimos essa calma de pensamento indispensável àquele que quiser ouvir a voz
da razão.
É no crisol da dor que se depuram as grandes almas. Às vezes, sob nossa vista,
anjos de bondade vêm tragar o cálice de amargura, como exemplificação aos que
são assustados pelos tormentos da paixão. A prova é uma reparação necessária,
aceita com conhecimento de causa por muitos dentre nós. Oxalá assim pensemos nos
momentos de desânimo, e que o espetáculo dos males suportados com essas grandes
resignações nos dê a força de conservarmo-nos fiéis aos nossos próprios
compromissos, às resoluções viris que tomamos antes de encarnar.
Leon Denis