Candidato à Redenção
Integrado nos fluidos comburentes a se lhe derramarem da própria alma, o
Espírito desditoso, com sede de esquecimento no corpo de carne, pedia em pranto:
- Senhor, por piedade, concedei-me a graça de renascer no planeta físico!
Percebo agora a extensão de meus débitos e a enormidade de meus crimes! Feri
vossa Lei, espalhando miséria e destruição!... E sofro, Senhor, por desleixo
meu, o resultado de minha imprevidência delituosa! Trago em minhas entranhas o
inferno que acendi em mim mesmo!...Ó Benfeitor da Eternidade, conduzi-me, de
novo, à escola da Terra, a fim de que eu possa, por algum tempo, olvidar minhas
horrendas feridas...Dai-me o câncer, a lepra ou outra enfermidade, Senhor, em
cuja virulência bendita expungirei de meu ser o veneno da culpa! Encarcerai-me
num corpo paralítico em cuja armadura ressecada eu consiga olvidar o pretérito,
regenerando os meus infelizes pensamentos! Entregai-me às provas da idiotia, em
que me redima, detende meu Espírito arrependido num leito de chagas terrestres
em cujos tormentos acrisole o coração entenebrecido no desespero! Dai-me o
aleijão, a cegueira, a epilepsia, a forma torturada, a fome e a nudez, mas
ajudai-me a renascer no mundo com a graça do esquecimento!...
Nisso, quando mais comoventes se lhe faziam as lágrimas, comparece junto dele
benemérito Amigo Espiritual, que lhe diz, bondoso:
- Acalma-te, meu irmão! Tuas súplicas foram ouvidas! A Divina Bondade
conferir-te-á nova bênção no campo dos homens... Não precisarás, porém, recorrer
à morféia, à imobilidade, ao pênfigo ou à mutilação para o resgate das tuas
dívidas... Afirma-nos o Senhor: -“misericórdia quero, não sacrifício...”
Voltarás ao mundo em berço acolhedor e servirás ao Espiritismo, com Jesus, na
condição de médium amigo da redenção... Aprenderás que o amor cobre a multidão
de nossos pecados e afeiçoar-te-ás ao bem de todos, buscando no bem de todos a
luz de teu próprio bem!...
Enlevado com a promessa, o mísero brandou, esperançoso e desafogado:
- Louvada seja a Bondade Infinita de Deus!
- Oh! sim, cultivarei o serviço aos meus semelhantes na concessão com que o Céu
me agracia! Saberei usar a benevolência em todos os lances da luta! Abraçarei os
humildes e compreenderei os orgulhosos para ajudá-los com amor! Tolerarei sem
revolta flagelações e calúnias, consagrar-me-ei ao desprendimento das posses
materiais! Respirarei na Terra, mentalizando a Compaixão Celeste para saber
auxiliar sem recompensa e entender sem exigir! Sim! Serei médium e sofrerei
amando, como Jesus nos amou!...
Recolhido a grande hospital de socorro, a breve tempo conseguia habilitar-se
para o novo renascimento.
Mergulhado em rendas de ilimitado carinho, ressurgiu num corpo abençoado e
perfeito, em lar simples e generoso que o acariciou com alegrias puras, qual
santuário que o preparasse na direção de uma festa de luz.
Foi assim que, alcançando a maioridade corpórea, o candidato ao serviço do bem
foi conduzido naturalmente à província de trabalho em que lhe competia a
execução dos votos que formulara.
Entretanto, ao contacto inicial com as bênçãos da tarefa, sentiu que a dúvida e
a irritação lhe visitavam o campo íntimo.
Em toda parte, surpreendia incompreensão e discórdia, censura e suspeita
constantes...
Amedrontado perante a luta que se esboçava feroz, pediu, certa feita, numa
sessão de fraternidade e intercâmbio, a orientação do Benfeitor Espiritual que o
ajudava no templo espírita em que se lhe sediavam as esperanças primeiras, e,
tão logo saudado pelo Instrutor, rogou compungidamente:
- Que fazer, meu amigo, diante das sombras que me entravam os movimentos?
- Perdoa e ajuda, meu filho – respondeu-lhe o mensageiro benevolente.
- E quando alguém me crive de calúnia e maldade?
- Ajuda e perdoa para que a luz do entendimento se faça vitoriosa.
- E a desconfiança? como agir perante as criaturas que me experimentam com
aspereza e sarcasmo?
- Perdoa e ajuda, aguardando o tempo.
- E as pessoas cruéis que me procuram, tocadas de más intenções, à maneira do
animal que se sacia nas águas de um poço, agitando o lodo que lhe dorme no seio?
- Ajuda e perdoa para que se renovem um dia...
-Sofro com as mistificações que, por vezes, me assaltam... Como proceder diante
daqueles que me ensombram a inspiração, compelindo-me ao desencanto?
- Perdoa e ajuda sem repousar, recebendo em tais lições do caminho o justo apelo
à tua construção de humildade... De quando em quando, a mistificação
auxiliar-te-á a entender que os talentos do Alto não te pertencem, ensinando-te
o respeito ante a Bondade Celestial.
- Vejo-me cercado pela exigência daqueles que me interpretam à conta de
malfeitor, solicitando-me as horas para o resvaladouro do crime...Como tratá-los
na rota de minha fé?
- Perdoa e ajuda sempre.
- Mas de que modo agir com ignorantes e ingratos, com as raposas da astúcia e
com os lobos da crueldade que pretendem senhorear minhas forças?
- Ajuda e perdoa constantemente.
- Ainda mesmo quando não me desculpem as fraquezas e não me auxiliem na solução
das próprias necessidades?
- Sim, meu filho – acentuou o benfeitor -, é imprescindível ajudar e perdoar sem
descanso.
Levantou-se o consulente para a despedida, e após o encerramento da reunião, com
fervorosa prece, o candidato à mediunidade que pedira o câncer e a lepra, a
cegueira e a mutilação, a paralisia e o infortúnio, para ressarcir o passado
delituoso, retirou-se da casa e ninguém mais o viu.
Irmão X