O Diagnóstico
Antes da reunião, Tomé Colavida imprimiu a carícia habitual aos bigodes
longos, fisgou a médium Dona Eulália com um olhar de prevenção e dirigiu-se ao
orientador dos trabalhos, atenciosamente:
- Senhor Martinho, vejamos o caso de meu diagnóstico. Iniciados os serviços
psicográficos, espero que o receitista me não falte com os esclarecimentos
técnicos, relativamente aos meus males orgânicos. Imagine o senhor que já
visitei diversos agrupamentos sem resultado satisfatório.
- Não obteve definições precisas? – indagou o bondoso diretor da reunião,
demonstrando fraternal interesse.
- Nunca. Freqüentemente, recebo mensagens de Acácio, amorosa entidade que se
afirma amigo de outras eras; todavia, suas elucidações não me satisfazem. E vivo
desalentado, aflito. Desde muito, permaneço arredio da Medicina. Meu sobrinho
Sinfrônio, clínico de renome, aconselhou-me exames detalhados. Entretanto,
perambulei em vão, através de laboratórios, por mais de dois anos e, de alguns
meses para cá, vivo interessado no Espiritismo, procurando, porém, inutilmente,
a solução do meu caso, pelas salas mediúnicas.
- Mas, não terá obtido conselhos, receituário, indicações? – inquiriu Martinho,
emocionado.
- Sim - esclareceu o doente -, semelhantes recursos não me têm faltado; contudo,
que me vale o roteiro sem nomenclatura? Necessito obter o diagnóstico de minha
verdadeira situação. Creio não andaria bem avisado se usasse remédios, ignorando
quais os sofrimentos físicos. Preciso esclarecimentos exatos, diretrizes
francas. Apesar, porém, de minha insistência, os Espíritos nunca traçaram o
diagnóstico desejado. Aconselham-me, atendendo talvez a minha ansiedade, com a
panacéia das boas palavras. Entretanto, isto não serve ao meu temperamento amigo
da verdade.
Martinho sorriu paciente e obtemperou:
- Em todas as coisas, meu amigo, há que considerar os desígnios providenciais de
Deus.
- Mas não estou contra Deus - objetou o doente, numa expressão de
superioridade.- Se é que os desencarnados vêem nossa máquina orgânica, externa e
internamente, por que semelhante esquivança aos meus pedidos reiterados? Sabem
acima dos médicos, enxergam mais que os raios X, auscultam além da epiderme.
Donos de tamanhas possibilidades, por que a negação de algumas palavras que me
aclarem as dúvidas? Medicar-se alguém, sem o conhecimento da própria situação,
constitui grave perigo. Simples receituário não satisfaz ao homem observador e
inteligente.
O orientador da reunião não quis alimentar a palestra e permaneceu em silêncio,
convidando, em seguida, os presentes à oração habitual.
Terminados os trabalhos, a folha de papel que relacionava o nome de Colavida não
exibia coisa alguma, além de certas indicações para tratamento. Nada de
explicações técnicas, nada de terminologia científica.
- E o diagnóstico? - perguntou o enfermo, desapontado, fitando a médium, entre a
desconfiança e a censura.
- Não recebi qualquer observação, neste sentido murmurou Dona Eulália, humilde e
tímida.
- Ora, ora, Sr. Martinho - disse Tomé ao diretor dos trabalhos -, às vezes chego
a pensar que este movimento de comunicações com o outro mundo não passa de
grosseira mistificação. Peço definições médicas e respondem-me com apontamentos
de alimentação e nomes de tinturas! Aonde iremos com isso?
Depois de mirar Dona Zulália, de alto a baixo, com ares de zombaria, perguntou:
- Quem receita por seu intermédio?
- É o Dr. João Crisóstomo de Toledo, que foi antigo médico nestes sítios.
Tomé riu, sarcástico, e acrescentou:
- Parece que ele anda desmemoriado e completamente alheio à Medicina. Este
Espírito deve ser um espertalhão.
A esta altura, Martinho adiantou-se:
- Mas, Sr. Colavida, nesta casa não temos o direito de insultar benfeitores. Não
somente os Espíritos amigos, mas também Dona Eulália não nos pedem retribuição
alguma. Os mentores espirituais, certamente, sacrificam-se bastante, vindo até
nós, e a médium abandona sagradas obrigações domésticas para atender aos nossos
apelos. Não desconheço as nossas deficiências e admito que a nossa tarefa esteja
repleta de falhas e erros que a experiência corrigirá; mas, seria justo acusar
de embusteiros os que se devotam ao trabalho, com amor e renunciação?
Tomé percebeu o terreno falso em que se colocara, pedindo desculpas, invocou o
famoso subconsciente e rogou fosse admitido à próxima sessão, recebendo as
melhores expressões de fraternidade por parte dos companheiros ali reunidos.
Na semana seguinte, repetiram-se os mesmos comentários, com a teimosia renitente
de Colavida, a boa-vontade de Martinho e a natural timidez de Dona Eulália. O
enfermo estava ansioso. Solicitava pareceres do médico desencarnado, emitia
observações técnicas e, por último, pedia, se possível, o comparecimento de
Acácio, o amigo invisível, para maior esclarecimento da situação. Findos os
trabalhos da noite, verificou-se que João Crisóstomo lançara no papel as mesmas
recomendações anteriores, sem omitir uma vírgula. Nada de nomear a enfermidade
do consulente. Acácio, contudo, escrevera-lhe mensagem ponderada e afetuosa.
– "Meu irmão – dizia ele, revelando intimidade e carinho –, não aguardes um
diagnóstico que nos seria difícil fornecer. Vale-te da cooperação do amigo
espiritual que te ministrou indicações tão úteis e procura pô-las em prática.
Por que impor condições aos que te beneficiam? O grande problema não é o de
receberes uma frase complicada, à guisa de definição, mas sim buscares a
restauração das tuas energias, cheio de boa-vontade. O diagnóstico, Tomé, nem
sempre pode ser perfeito e nem sempre se ajusta às finalidades da renovação
orgânica. O corpo do homem é uma usina de forças vivas, cujos movimentos se
repetem no tocante ao conjunto, mas que nunca se reproduzem na esfera dos
detalhes. As dores de cabeça são idênticas nas sensações que proporcionam, mas
quase sempre desiguais nas origens. Como te oferecer um diagnóstico exato, se
amanhã sensíveis modificações podem ocorrer em tuas células mais íntimas? Não te
furtes ao benefício, apenas porque não podes impressionar os olhos mortais com
meia dúzia de termos indecifráveis. Trata-te, meu amigo! o tempo é precioso.
Cuida da maquinaria física, aceita a bondade do Eterno Pai, sem cristalizar o
pensamento nas normas secundárias da ciência terrestre. Lembra que te amamos
intensamente e desejamos teu bem-estar."
Leu Colavida a mensagem afetuosa, volvendo irritadiço;- Afinal, estou sem
compreender coisa alguma. Sinto-me doente, cansado, peço esclarecimentos que
satisfaçam e os invisíveis me dirigem exortações?!
E, fixando o olhar na médium, rematava:
- Francamente, minha decepção é sem limites. Martinho, na fé serena que lhe
assinalava as atitudes, ajuntou tranqüilo:
- É o que merecemos, meu amigo. Desejávamos receber o diagnóstico, mas ...
Tomé coçou nervosamente a cabeça e cortou-lhe a palavra:
- Nada de reticências. Presenciamos verdadeiros fracassos. O que lastimo é o
tempo perdido a procurar elucidações, quando me asseveravam que o Espiritismo é
fonte de verdade. Onde a franqueza nestas farsas em que venho pondo minhas
melhores esperanças? Em todos os Grupos, apenas encontrei material incompleto,
entre médiuns supostamente humildes e doutrinadores pretensamente inspirados.
Estou farto. Não vim procurar consolações, mas informes necessários. Estes
Espíritos, contudo, devem andar lá no Alto à maneira dos asnos cá em baixo. Em
toda parte é dissimulação, ignorância, fanatismo. Solicito diagnóstico e
lançam-me recomendações estranhas a todo conhecimento de posologia. Abandonarei
minha experiência, convencido de que Espiritismo e mediunidade são duas tolices
mundiais.
Os companheiros já se haviam retirado. Apenas Martinho e Dona Eulália
permaneciam ali, suportando heroicamente a neurastenia do enfermo malcriado.
Reconhecendo-lhe a irritação, dispunham-se ambos a abandonar o recinto, em
silêncio, quando, ao primeiro gesto de despedida, Tomé procurou retê-los
ansiosamente :
– Por quem são, ajudem-me!... Não desejo sair, experimentando tamanha impressão
de abatimento moral. Quero a verdade, senhor Martinho. Auxilie-me na consecução
deste propósito. A falta do diagnóstico desejado acabrunha-me. Sinto que tudo é
mentira em torno de meus passos.
E depois de fixar a médium, ansiosamente, concluiu:
Dona Eulália, se esses Espíritos que a senhora diz ouvir e ver são
personalidades reais, por que razão me negam a verdade? Agora que estamos a sós,
atendam-me por amor de Deus. Peçamos diretamente aos invisíveis que se
manifestem e me esclareçam.
Havia tamanha emoção naquelas palavras, que Martinho e a médium se entreolharam
penalizados. À interpelação silenciosa do diretor das sessões, a nobre senhora
respondeu bondosamente:
- Estou pronta.
Sentaram-se os três. O orientador orou com lágrimas, invocando a Providência
Divina. Foi então que o amigo espiritual, por intermédio de Dona Zulália, falou
em voz triste, mas firme:
- Tomé, em vão temos procurado auxiliar-te na cura. Atende ao teu caso orgânico,
enquanto é tempo, porque teu corpo está dominado pela morféia nervosa. Colavida
fez-se pálido e esforçou-se por não cair, ali mesmo, fulminado pelo diagnóstico
doloroso.
Suspenderam-se as preces, sob forte emoção.
No dia imediato, o doente atormentado procurou gabinetes de pesquisas e
especialistas em moléstias do sangue, obtendo a confirmação amarga. À noite,
insistiu para que Martinho e Dona Eulália se reunissem na sua companhia. Estava
desfigurado, em pranto. Terminada a prece do diretor da reduzida assembléia, o
enfermo exclamou soluçando:
– Oh! benfeitores invisíveis, por quem sois, auxiliai-me no destino cruel! Que
surpresa dolorosa me preparastes, dando-me conhecimento da realidade
terrível!...
Mas, nesse instante, a generosa entidade de Acácio tomou o punho da médium e
escreveu :
- "Conforma-te, meu querido Tomé! Não queria a verdade completa, o diagnóstico
aproximado de tua situação orgânica? Não chores. Lembra-te de que Jesus é o
Divino Médico e não esqueças que, se tens agora a lepra do mundo, não estás
esquecido pela bondade de Deus."
Humberto de Campos