Luta por Renascer

Um mês correra célebre sobre os acontecimentos que vimos de narrar, quando Odila nos procurou, suplicando ajuda.

Vinha triste, atormentada.

Zulmira, incompreensivelmente para ela, havia contraído perigosa amigdalite.

Sofria muito.

Por seis dias consecutivos, informou nossa amiga inquieta, achava-se no trabalho de vigilância.

Esforçava-se, quanto lhe era possível, por liberá-la de semelhante aborrecimento físico, entretanto, via baldadas todas as providências.

Desolada, induzira Amaro a trazer um médico, no que foi obedecida, mas o facultativo não atinava com a causa íntima da enfermidade e, ignorando a verdadeira posição da cliente, poderia ameaçar-lhe a tarefa maternal com a aplicação de recursos impróprios.

Rogava-nos, por isso, socorro imediato.

Clarêncio não se delongou na assistência precisa.

Era noite, quando demandámos o ninho doméstico que já se nos fizera familiar.

Zulmira, no leito, demorava-se em aflitiva prostração. Cabelos em desalinho, olheiras arroxeadas e faces rubras de febre, parecia aguardar a chegada de alguém que a auxiliasse na debelação da crise.

A supuração das amígdalas poluíra-lhe o hálito e lhe impunha dores lancinantes.

A pobre senhora apenas gemia, semi-sufocada, exausta...

O esposo e a filha desdobravam-se em carinho, procurando reanimá-la, mas Zulmira, que deixáramos, trinta dias antes, corada e bem disposta, revelava-se agora profundamente abatida.

Drogas variadas alinhavam-se em prateleira próxima.

Nosso instrutor examinou-as, cuidadosamente, e, percebendo-nos a admiração, disse comovido:

- Zulmira reclama nosso concurso diligente. Precisamos garantir-lhe o êxito na missão esposada.

Carinhosamente, aplicou-lhe recursos magnéticos, detendo-se de modo particular na região do cérebro e na fenda glótica.

A doente acusou melhoras imediatas.

Reabilitou-se o movimento circulatório.

A febre decresceu, propiciando-lhe repouso, e o sono reparador surgiu por fim, favorecendo-lhe a recuperação.

Hilário indagou sobre a causa da moléstia insidiosa, que tão violenta se apresentara, ao que Clarêncio respondeu, seguro:

- A questão é sutil. A mulher grávida, além da prestação de serviço orgânico à entidade que se reencarna, é igualmente constrangida a suportar-lhe o contacto espiritual, que sempre constitui um sacrifício quando se trata de alguém com escuros débitos de consciência. A organização feminina, durante a gravidez, sofre verdadeira enxertia mental. Os pensamentos do ser que se acolhe ao santuário íntimo, envolvem-na totalmente, determinando significativas alterações em seu cosmo biológico. Se o filho é senhor de larga evolução e dono de elogiáveis qualidades morais, consegue auxiliar o campo materno, prodigalizando-lhe sublimadas emoções e convertendo a maternidade, habitualmente dolorosa, em estação de esperanças e alegrias intraduzíveis, mas no processo de Júlio observamos duas almas que se ajustam nas mesmas dívidas e na mesma posição evolutiva. Influenciam-se, mutuamente.

O Ministro fêz longa pausa, tornando aos passes, a benefício da enferma.

Odila acompanhava-o, atenciosa.

De todos nós, parecia ela a mais preocupada com as lições ouvidas. Identificava-se-lhe o interesse em tudo aprender para tornar-se ali mais útil.

Findos alguns instantes, Clarêncio continuou:

- Se Zulmira atua, de maneira decisiva, na formação do novo veículo do menino, o menino atua vigorosamente nele, estabelecendo fenômenos perturbadores em sua constituição de mulher. A permuta de impressões entre ambos é inevitável e os padecimentos que Júlio trazia na garganta foram impressos na mente materna, que os produz no corpo em que se manifesta. A corrente de troca entre mãe e filho não se circunscreve à alimentação de natureza material; estende-se ao intercâmbio constante das sensações diversas. Os pensamentos de Zulmira guardam imensa força sobre Júlio, tanto quanto os de Júlio revelam expressivo poder sobre a nova mãezinha. As mentes de um e de outro como que se justapõem, mantendo-se em permanente comunhão, até que a Natureza complete o serviço que lhe cabe no tempo. De semelhante associação, procedem os chamados “sinais de nascença”. Certos estados íntimos da mulher alcançam, de algum modo, o princípio fetal, marcando-o para a existência inteira. É que o trabalho da maternidade assemelha-se a delicado processo de modelagem requisitando, por isso, muita cautela e harmonia para que a tarefa seja perfeita.

Em seguida, o Ministro, com devoção paternal, levou a efeito diversas operações magnéticas de auxílio à cavidade pélvica, afirmando a necessidade de socorro ao útero, em vista do complicado e difícil desenvolvimento de Júlio reencarnante.

Meu colega, avançando mais longe, talvez tentando converter aquela hora de fraternidade tanto quanto possível em hora de estudo, recordou algumas de suas experiências médicas, acrescentando:

- É comum a verificação de exagerada sensibilidade na mulher que engravida. A transformação do sistema nervoso, nessas circunstâncias, é indiscutível. Muitas vezes, a gestante revela decréscimo de vivacidade mental e, não raro, enuncia propósitos da mais rematada extravagância. Há mulheres que adquirem antipatias súbitas, outras se recolhem a fantasias tão inesperadas quanto injustificáveis. Em muitas ocasiões na Terra, perguntei a mim mesmo se a gravidez, na maioria dos casos, não acarreta temporária loucura...

O orientador sorriu e obtemperou:

- A explicação é muito clara. A gestante é uma criatura hipnotizada a longo prazo. Tem o campo psíquico invadido pelas impressões e vibrações do Espírito que lhe ocupa as possibilidades para o serviço de reincorporação no mundo. Quando o futuro filho não se encontra suficientemente equilibrado diante da Lei, e isso acontece quase sempre, a mente maternal é suscetível de registrar os mais estranhos desequilíbrios, porque, à maneira de um médium, estará transmitindo opiniões e sensações da entidade que a empolga.

- Afligia-me observar – lembrou Hilário, com interesse – a inopinada aversão de muitas gestantes contra os próprios maridos...

- Sim, isso ocorre sempre que um inimigo do pretérito volta à carne, a fim de resgatar débitos contraídos para com aquele que lhe servirá de pai.

- Temos, contudo, os casos – ponderei, curioso – em que na ribalta do mundo vemos filhas que foram evidentemente fortes desafetos das mães no passado remoto ou próximo, tal a animosidade que lhes caracteriza as relações. Reparamos que, em tais ocorrências, as filhas são muito mais afins com os pais, vivendo psiquicamente em harmoniosa associação com eles e distanciadas espiritualmente das mãezinhas que, por vezes, tudo fazem debalde para quebrar as barreiras de separação. Em ligações dessa natureza, surgirão obstáculos à reencarnação?

Clarêncio fitou-me de maneira significativa e respondeu:

- De modo algum. A esposa, por devotamento ao companheiro, cede facilmente à necessidade da alma que volta ao reduto doméstico para fins regeneradores e, em se tratando de alguém com intensa afinidade junto ao chefe do lar, vê-se o marido docemente impulsionado a oferecer maior coeficiente afetivo à companheira, de vez que se sente envolvido por forças duplas de atração. Sob dobrada carga de simpatia, dá muito mais de si mesmo em atenção e carinho, facilitando a tarefa maternal da mulher.

A elucidação clara e lógica satisfez-nos plenamente.

Palestrámos ainda por alguns minutos, nos quais o nosso orientador ministrou variadas instruções a Odila, habilitando-a por socorros de emergência.

Regressámos, edificados, ao nosso círculo de trabalho comum, no entanto, depois de alguns dias, a primeira esposa do ferroviário tornou até nós, solicitando nova intervenção.

Zulmira, informou aflita, atravessava estarrecedora crise orgânica.

Vômitos incoercíveis perturbavam-na, cruelmente.

Não tolerava a mais leve alimentação.

O sistema digestivo apresentava alterações profundas.

O médico agia baldadamente, visto que o estômago da enferma zombava de todos os recursos.

Não nos delongámos para a execução do trabalho assistencial.

Revelava-se a gestante, efetivamente, em condições ameaçadoras.

As náuseas repetidas provocavam a gradativa incursão da anemia.

Clarêncio, porém, submeteu-a a passes magnéticos de longo curso, prometendo que a medida se faria seguir das melhoras necessárias.

Deveres diversos convocavam-nos a presença, em outros setores.

Ainda assim, depois das despedidas, Hilário perguntou pelo motivo de semelhante fenômeno, que, declarou ele, em toda a sua experiência médica na Terra não conseguira explicar.

- Estamos certos de que a ciência do porvir ajudará a mulher na defesa contra essa espécie de aborrecimento orgânico – asseverou o Ministro, com segurança -, encontrando definições de ordem fisiológica para tais conflitos, mas, no fundo, o desequilíbrio é de essência espiritual. O organismo materno, absorvendo as emanações da entidade reencarnante, funciona como um exaustor de fluidos em desintegração, fluidos esses que nem sempre são aprazíveis ou facilmente suportáveis pela sensibilidade feminina. Daí, a razão dos engulhos freqüentes, de tratamento até agora muito difícil.

Semelhante nota oferecia-nos valioso material de meditação.

O tempo desdobrou-se semana após semana.

Insistimos na visitação à residência de Amaro, de quando em quando, convocados ou não para o trabalho, até que, certa manhã, Odila veio até nós com o júbilo de uma criança feliz, anunciando que o menino tornara à luz terrestre.

De conformidade com a aprovação da pequena família, chamar-se-ia novamente Júlio.

Comungámos da sua profunda alegria e, com a solidariedade dos amigos sinceros, voltámos a abraçá-lo.


André Luiz