Uma Venerável Instituição
Parecerá estranho que os Espíritos desencarnados volvam à Terra para visitar
as instituições humanas, velando pelo mecanismo dos seus trabalhos e agindo,
indiretamente, nas suas deliberações.
A verdade, porém, é que isso constitui um acontecimento natural. Se os vivos
continuam os trabalhos daqueles que os antecederam na jornada da morte, as almas
do mundo invisível, nos planos em que me encontro, têm de voltar, em sua
maioria, às lutas terrestres. Todas as edificações de uma época têm as suas
bases profundas nas épocas que a precederam. Nenhum homem pode criar, por si só,
alguma coisa e sim desenvolver os princípios encontrados, aproveitando o
material disperso para continuar a obra evolutiva, imprimindo-lhe a expressão do
seu pensamento pessoal. Mesmo o inventor e o artista, com as largas reservas de
possibilidade e paciência que os séculos de experiências acumularam nos
escaninhos de suas personalidades, estão englobados nessa classificação. É que o
progresso é uma obra coletiva. Cada criatura deixa uma nota na sua admirável
sinfonia. As eras se interpenetram umas às outras, tal como se confundem, no
oceano largo do tempo, os vivos e os mortos. A vida é o resultado das trocas
incessantes e o insulamento é a única morte no concerto universal.
É considerando essas verdades que me tenho dedicado a conhecer, dentro das
minhas possibilidades, as instituições dos homens, voltando para falar delas com
a minha linguagem característica, evitando o terreno do transcendentalismo, para
fornecer, espontaneamente, a minha carteira de identificação.
Nas proximidades do edifício do Tesouro Nacional, na Avenida Passos, ergue-se a
Federação Espírita Brasileira, guardando, na cidade maravilhosa, as grandes
tradições da caridade e da esperança, filhas do coração de Ismael, cujo
pensamento inspira as atividades do Evangelho nas terras de Santa Cruz.
Já tive ocasião de manifestar o meu respeito por essa instituição venerável,
cujas portas se abrem generosas para os famintos do pão espiritual e para os
necessitados do corpo, ao lado do formigueiro humano, onde se agitam cerca de
dois milhões de pessoas. Conhecendo-lhe, embora, a finalidade evangélica, em
cuja base imortal repousam os seus labores associativos, no objetivo de
emprestar a minha colaboração humilde ao desdobramento dos seus programas,
procurei alcançar numa visão de detalhe a sua obra edificadora.
A visita de um desencarnado não se verifica conforme as praxes sociais que
presidem, no mundo dos homens de carne, a um ato dessa natureza; mas, no pórtico
da Casa de Ismael encontrei o mesmo Pedro Richard, que me levou a observar as
intimidades do seu santuário.
Visitei, uma a uma, as suas dependências.
Nas escadarias e nos gabinetes amplos, não somente se reúnem os médiuns
abnegados e os sofredores que aí os procuram diariamente; verdadeiras legiões de
seres invisíveis, que os vivos considerariam como fileiras de sombras, deslizam
pelas salas e pelos corredores, revezando-se no sagrado mister da caridade,
fornecendo o que podem, no labor piedoso e cristão.
A presença dos enfermeiros invisíveis enche a atmosfera da casa de fluidos
suaves e balsâmicos. É, talvez, por esse motivo que alguns amigos meus
procuravam descansar na Federação, quando passávamos nas vizinhanças da antiga
rua do Sacramento, cansados dos rumores urbanos e das longas distâncias,
acreditando alcançar ai um bando regenerador de suas energias psíquicas.
- Aqui – explicava Pedro Richard -, nos reunimos todos nós, os que amamos as
claridades do Evangelho, ansiosos de repartir as esperanças da Boa Nova. Há
lugar, nesta casa, para todos os trabalhadores, e basta querer para que cada um
seja incorporado à caravana que nunca se dissolve. À maneira daqueles coxos e
estropiados, a que se referia Jesus no seu ensinamento, vivemos pela
misericórdia do Senhor, que não nos desampara com a sua bondade infinita. O
banquete de Ismael está aqui sempre posto e, das alturas divinas, caem sobre o
seu templo humano as flores da esperança, da piedade e do perdão, transformadas
em bênçãos de Deus, repartidas, como a luz do Sol, com todos os corações.
Aproveitamos, nos estudos da doutrina, aquela parte que representava a
predileção de Maria, em contraposição com os trabalhos apressados e inquietos de
Marta, segundo a observação do Divino Mestre, e pugnamos pelo esforço da reforma
interior de cada um, reconhecendo que somente na assimilação dos princípios
morais da doutrina, em sua feição de Cristianismo restaurado, poderemos atingir
a finalidade de nossas preocupações.
- Mas – perguntei admirado – a instituição desprezará, porventura, as expressões
cientificas do Espiritismo?
-“De modo algum – respondeu-me solícito -, seus aspectos fenomênicos merecem da
Federação todo o zelo possível, mas essas expressões da ciência representam os
meios e não o fim, constituindo, desse modo, corolários das expressões morais do
ensinamento dos Espíritos, chegando-se à ilação de que nada se terá feito sem a
edificação das consciências, à luz dos seus princípios. Haja vista o que
aconteceu na Europa, bafejada por tantos fenômenos extraordinários. Com algumas
exceções, os sábios que ali se ocuparam do assunto, possuídos do mais avançado
personalismo, definiram os fatos mediúnicos dentro de suas vaidades pessoais,
complicando o estudo da doutrina com o sabor cientifico de suas palavras,
desconhecendo a profunda simplicidade dos ensinamentos revelados.”
- É com essa expressão religiosa e regeneradora que o Espiritismo conta
esclarecer os problemas do campo social? – perguntei ainda.
-“De fato – continuou o meu generoso amigo -, toda a vitória da doutrina tem de
começar no coração. Sem o selo da renovação interior, qualquer tentativa de
reforma constitui um caminho para novas desilusões. Seria, pois, inútil
organizarmos grandes movimentos para uma salvação imediata, se o espírito geral
se encontra nas sombras. Onde se terá visto uma colheita sem o trabalho da
semeadura? A missão dos espíritas não representa, portanto, uma tarefa
artificiosa e nem lhes compete disseminar os laboratórios de ilusões. Suas
responsabilidades são muito grandes no campo da educação evangélica das massas e
no plano da caridade pura, assistindo os sofredores e os desesperados. Esse
campo de trabalho moral é o imenso reservatório das forças indestrutíveis da
Nova Revelação, e a beleza dos seus aspectos tem seduzido muitas mentalidades de
elite, do mundo inteiro. Mesmo a esta Casa têm aportado muitos espíritos
brilhantes, vindos da Política e da Ciência, considerando que o Espiritismo,
verdadeiramente interpretado, é a síntese maravilhosa que abrange todas as
atividades humanas, no sentido de aperfeiçoá-las para o bem comum.”
- Mas – ponderei -, não seria aconselhável movimentarem-se os elementos da
doutrina, projetando-se as expressões de seus valores no mundo das realizações?
- “Não reprovamos quantos se entregam, desde já, aos trabalhos dessa natureza,
reconhecendo que o Espiritismo é um campo imenso onde cada qual tem a sua tarefa
a desempenhar, e onde o exclusivismo pecará sempre pela inoportunidade; mas,
julgamos prudente criar-se a mentalidade evangélica antes das obras espíritas, a
fim de que elas não se percam nos labirintos do mundo e para que sejam
devidamente cultivadas pelos verdadeiros discípulos do único Mestre, que é
Jesus-Cristo”.
As palavras esclarecedoras de Richard calaram-me no espírito.
Compreendi que, de fato, nunca, como agora, a sociedade humana precisou tanto de
recorrer ao auxilio sobrenatural do mundo invisível para reorganizar as suas
energias, a fim de manter a sua própria estabilidade moral.
Em companhia do mesmo amigo, voltei para o saguão de entrada do edifício, onde
se reunia a legião de aflitos e de consolados.
Era noitinha. A Avenida Passos regurgitava de automóveis de luxo, plena de luz e
de movimento. E enquanto os sujeitos felizes procuravam, no coração enorme da
cidade, as casas alegres da noite, uma grande multidão de pessoas, ricas e
pobres, subia com humildade as escadas do grande edifício, para se curvarem
sobre o Evangelho, procurando aí a lição divina e o socorro espiritual. E antes
que me confundisse, de novo, com as coisas da minha nova vida, lembrei-me das
primitivas assembléias cristãs, onde se misturavam todas as posições sociais no
exemplo de fraternidade apostólica, no recanto humilde das catacumbas romanas.
Pedro Richard estava com a razão.
É verdade que Nero não está hoje no poder, mas os circos dos suplícios foram
substituídos, prevalecendo a mesma perversidade entre os homens,
envenenando-lhes o coração. Aos funestos efeitos de uma nova aliança com
Constantino, é preferível, portanto, esclarecer e iluminar o coração de
Constantino.
Humberto de Campos