O Juri Negativo
O Espírito de Rodrigo Oberon, antigo homem de letras na Terra, foi chamado a um júri familiar, constituído de afeiçoados e colegas que com ele haviam privado intimamente na luta material.
O desencarnado dera noticias de si mesmo, depois da morte, e o fato alvoroçara o antigo campo doméstico, provocando estranheza geral. Contudo, diante das consequências morais que a surpresa envolvia, os velhos camaradas do morto repeliram a boa-nova, enèrgicamente. Oberon, todavia, não se intimidou e, porque habitasse agora o país da verdade, continuou escrevendo, dirigindo-se, não mais aos irmãos de outro tempo, mas aos companheiros de boa vontade que a nova tarefa lhe dera a conhecer, enriquecendo-lhe o coração. Ante a insistência dele, porém, os amigos reclamaram-lhe a presença, em reunião mais íntima, a que o médium, acusado de embusteiro e mistificador, compareceu constrangido, encarcerado em justas inibições. No entanto, tamanho era o bom desejo de Rodrigo, que os óbices naturais foram vencidos e ele conseguiu manifestar-se perante a, assembléia de irmãos do pretérito, agora convertidos em simples investigadores.
Logo notou que ninguém, na sala, recebia, a visita com a espontaneidade desejável. Todos os presentes timbravam em fixar atitudes de vigilância. Alguns arregalavam os olhos, outros apuravam a acuidade auditiva, para intensificar a severidade da crítica.
Oberon, todavia, enganado em seus melhores e mais belos propósitos, deu vazão à emotividade que lhe banhava a alma e, chorando de júbilo, dentro dos conhecimentos dilatados que a morte lhe outorgara, saudou, comovidamente:
– Meus amigos, que a paz de Deus esteja conosco!
Entreolharam-se admirados os assistentes. Um deles rompeu a estupefação e comentou em voz alta:
– Oh! que significa isto? Rodrigo Oberon era um ateu inteligente, não falaria agora com relação a Deus.
Antes que as opiniões contraditórias se fizessem ouvir com mais calor, evidenciando menosprezo à preciosa oportunidade, Rodrigo asseverou, paciente:
– Amigos, a morte modifica-nos. Impossível insistir na negação sistemática, diante das afirmações da vida vitoriosa.
E passou a relacionar consoladoras reminiscências, referindo-se a acontecimentos e datas inesquecíveis. Todavia, enquanto o desencarnado expandia sublimes emoções, os presentes acentuavam a frieza do primeiro instante de observação. Fizera Oberon ligeiro intervalo e um deles considerou atrevidamente:
– Isto não constitui prova. O médium conhece a biografia do morto.
E sorrindo, irônico, acrescentava:
– Quem a ignoraria, porventura?
Sentindo que não se fazia conhecer pelo passado que recordava, perante os indagadores intransigentes, Rodrigo passou a falar do novo plano de existência, descrevendo-lhe a beleza divina. A assembléia, porém, escutou impassível e um dos antigos companheiros exclamou, na primeira pausa do narrador:
– Tudo mentira! onde não observamos o desvario dum cérebro dementado, vê-se a mistificação criminosa. A descrição é puramente fantástica!
Fixando os olhos miúdos nos colegas, tão rígidos de sentimento quanto ele, indagava, sarcástico:
– Não teremos bastante ficção no mundo?
O Espírito permanecia angustiado. Estudava apressadamente um meio de prosseguir na defensiva afetuosa da verdade, quando um amigo se aproximou e dirigiu-lhe certa pergunta indiscreta, alusiva à família consangüínea. Ele sabia que se a morte o conservava sem mudança espiritual, não se verificava o mesmo no ambiente doméstico. A separação, na esfera terrena, determinara modificações apreciáveis em sua casa. Ferido no mais íntimo dalma pela crueldade da solicitarão, respondeu tìmidamente:
– Não me obriguem, por piedade, a opinar em situações que devo esquecer. Não me cabe o direito de interferir nas decisões respeitáveis dos que me foram amados no mundo! não posso, não posso!...
Contudo, insensível ao seu sofrimento, um dos investigadores considerou:
– Não vêem? Estamos presenciando um caso de cadeia ou sanatório. Quando se procura a identificação do morto, o Espírito recua...
A estas palavras, seguiram-se gargalhadas sonoras.
Rodrigo não desanimou.
Reunindo os recursos verbais, referiu-se, profundamente emocionado, aos laços sublimes da ternura e da compreensão nas velhas alegrias da camaradagem terrestre, mas, ao terminar, alguém gritou desrespeitosamente:
– Simples banalidades! Acabemos a farsa! o diabo não tem família!
Oberon tentou explicar-se, ainda, comentando com humildade a sua posição difícil, no momento, e relacionando as surpresas que aguardam o homem, além do sepulcro. Todavia, antes de concluir, um dos assistentes cortou-lhe a palavra, injuriando-lhe a presença:
– Vá, Satã imbecil! Um escritor medíocre não cometeria os erros de psicologia e linguagem que a sua audácia atribui ao nosso amigo morto. Saberemos vingar-lhe a memória, castigaremos os culpados desse ato burlesco, em que um demente, apelidando-se de médium, desempenha o papel do histrião criminoso, cabotino e inconsciente!
O Espírito calou-se e, depois de orar em silêncio, sufocado pelas lágrimas abundantes, despediu-se em voz pausada:
– Adeus, amigos! Nunca mais, enquanto permanecerem na carne, ouvirão Rodrigo Oberon em júris familiares. Entretanto, já que vocês não me recebem no céu do entendimento, eu irei encontrá-los no inferno da incompreensão na primeira oportunidade. Recusam agora o amigo que a vida lhes devolve, mas a morte esperará por vocês todos, encaminhando-os ao diabo que invocam. Até à vista!
E, sob forte impressão, dissolveu-se a pequena assembléia para que os velhos camaradas do morto continuassem marchando, por si mesmos, ao encontro da verdade, ferindo os próprios pés, no caminho vasto da experiência.
Irmão X