Quando Felisberto Voltou
Desde muito tempo, Felisberto Maldonado fizera-se espiritista de convicção profunda, quanto a raciocínios; não pudera, porém, compreender a extensão dos deveres que a Doutrina lhe trazia, quanto a sentimentos.
A reunião íntima no grupo doméstico, onde o intercâmbio entre as esferas visível e invisível se podia efetuar harmonicamente, não lhe dava razões a críticas acerbas, nem questões complicadas à fé. A esposa devotada era médium falante e, criatura maravilhosamente equilibrada, sabia dividir as obrigações mediúnicas e familiares, demonstrando raro senso nas atribuições que Deus lhe conferira. Dona Silvana conhecia o lugar de cada pessoa e de cada coisa na vida, e colocava os deveres de mãe acima de todas as situações terrestres. À vista disso, sua cooperação tornava-se preciosa, fosse onde fosse. No lar, distribuía afeto e carinho sem preferências egoísticas; nas reuniões doutrinárias, dava a cada companheiro de ideal o que se tornava justo. Por isso mesmo, os benfeitores da Espiritualidade encontravam-lhe no coração o campo reto, sem inclinações e sem abismos, onde se movimentavam confiantes na gloriosa tarefa da fraternidade e da luz.
Contudo, não acontecia o mesmo ao esposo. Felisberto esbanjava o tempo disponível a criticar asperamente. Porque vivia ao lado de pequena máquina espiritista, cujas peças se contavam por cinco a seis pessoas e jamais encontrara dificuldade na sua movimentação, tornara-se inapto a compreender as grandes tarefas. Descuidoso e rebelde, vivia a deslustrar reputações e a desanimar os fracos, impiedosamente. Tal disposição convertera-se-lhe em mania tão perigosa, que, mal regressava ao lar, após o serviço, lia o noticiário zelosamente, a fim de inteirar-se das notas escabrosas. Encontrado o pomo de maledicência, corria ao companheiro mais próximo e comentava:
– Leu a notícia, Amarante?
– Que notícia, homem de Deus?
– Ontem o João Faria compareceu à Polícia, para esclarecer o caso dos vinte contos.
Antes que o amigo se pronunciasse, Felisberto continuava de punhos cerrados e olhos vermelhos:
– Será isso ação de espírita? Sinto-me revoltado com o descaramento. Que cinismo! Quem o visse pregar o Evangelho dar-lhe-ia o nome de apóstolo. Passando eventualmente pelo Grupo, em que esse tratante colabora, sempre fiz questão de me interromper, para vê-lo, carinhoso e solícito, diante dos necessitados e sofredores.
Muita vez, tornei-o por padrão comparativo. Não é de revoltar os mais tolerantes?! Aqueles gestos de amparo fraternal constituíam capa imunda. Agora, temo-la aqui retratado na galeria de gatunos. Não é isto infâmia e desmoralização sobre todos nós?
– Sim – replicava Amarante prudentemente –, o caso do Faria, sem dúvida, é chocante; merece, porém, consideração especial. Quem sabe não será apenas vítima o pobre companheiro? Não são frequentes os terríveis enganos? A quantia desapareceu dentro da repartição. Ninguém surpreendeu o autor do delito. Alguns colegas o acusaram e o diretor julgou procedente a denúncia. João declarou-se isento de culpa, mas, nada obstante, foi demitido e convocado ao Distrito Policial. Este o quadro passível de exame aos nossos olhos falíveis. Analisando-lhe, porém, a vida irrepreensível, quem não se compadecerá do acusado? Quem sabe não esteja ele suportando voluntariamente a culpa de outrem? Às vezes, onde nossos olhos suspeitam criminosos, Deus observa missionários de renúncia.
Maldonado perdia o entusiasmo ardente de acusador, mas objetava renitente :
– Sem embargo da sua tolerância, mantenho cá o meu juízo.
E, incapaz de sentir a grandeza da espiritualidade oculta, rematava:
– Se Faria está sofrendo injustiças voluntariamente, então é porque prefere a mentira à verdade. Será condenável de qualquer modo. Antes de tudo é preciso viver às claras.
Não obstante conselhos do plano espiritual e advertências de amigos generosos, não se cansava do odioso fermento de crítica e intolerância. Acusava sem reflexões, desabridamente.
Se encontrava associação doutrinária, solidamente fundamentada, resistindo aos caprichos de companheiros invigilantes, adiantava-se desapiedado:
– Por que conservam tantos patrimônios em detrimento do bem? Não será falta grave reter tão grandes economias esquecendo comezinhos deveres de fraternidade? É isso. Ouvem-se palavras harmoniosas, mas o coração permanece distante. São todos férteis no aconselhar, negativos no fazer.
Felisberto não se detinha a examinar expressões coletivas, ignorava a luta de velhos companheiros oberados de responsabilidades e preocupações; não sabia que forças necessitavam encontrar por não trair deveres imensos, e, longe de lhes estender mãos fraternas na colaboração justa, acusava-os de agiotas, velhacos, negocistas.
Se algum amigo menos firme na fé lhe procurava os pareceres de homem experimentado, relativamente a um que outro companheiro estranho ao seu círculo pessoal, respondia sem hesitação :
– Aquele é sepulcro caiado. Não se iluda. De espiritista só tem a rotulagem, conheço-lhe a vida minuciosamente.
Por vezes, baseava tão áspero critério em mentirosas informações da leviandade popular.
Nas reuniões, ouvia conceitos evangélicos respeitosamente, mas o ensinamento sublime não lhe penetrava o coração. Arquivava-o no cérebro, apenas, no propósito de exigir alheios testemunhos.
Tão desviada existência terminou, como era natural, em reduzidíssimo círculo de afeições. Felisberto desconhecera o código da amizade, esquecera a cooperação fraterna, dissipara a força emotiva em acusações e críticas mordazes. Não edificara obra útil e passara na Terra à maneira de alguém que somente visse lama nos materiais construtivos, que a Providência espalhou em abundância nos caminhos da vida.
Decorrido algum tempo, reconhecendo o íntimo desejo da viúva generosa, o Instrutor espiritual do pequeno grupo anunciou que traria Maldonado na próxima sessão.
Prometeu e cumpriu. Contrariando, todavia, a ansiosa expectativa de todos, o visitante incorporou-se à médium mais jovem, vibrando em soluços convulsivos. Não saudou a quem quer que fosse, não se referiu à vida nova e apenas clamava de cortar o coração mais endurecido:
– Ai de mim! Quem me restituirá o equilíbrio dos olhos?! Não vejo senão animais horrendos, casas de lama envolvidas em sombra!...
E, após angustiados gemidos, perguntou:
– Quem sois vós que tendes garras em vez de mãos e mergulhais a cabeça entre espinhos?
Observando os benfeitores espirituais que Dona Silvana chorava baixinho, retiraram-no imediatamente e,ante perplexidade geral, o Mentor do círculo tomou a palavra e explicou paternalmente:
– Não vos admireis ante a dolorosa observação desta noite. Nosso Maldonado vem atravessando a prova justa de quantos se esqueceram de preservar a reflexão e a prudência, que são igualmente dons sublimes, subordinados ao ministério da vista espiritual. Ele, que jamais quis contemplar o lado útil e o aspecto louvável das pessoas e acontecimentos, colhe hoje os tristes resultados. Cada ser e cada coisa, nos planos de perfectibilidade em que nos encontramos, apresentam as faces de luz e sombra, quais lagos que oferecem o espelho transparente e o leito escuro, de lodo. Felisberto resistiu aos nossos apelos e desdenhou dos amigos vigilantes e dedicados. Gastou o tempo e fixou a experiência nas zonas sombrias. É natural que não surja à tona da vida eterna empunhando faróis. Passando longos anos no fundo do lago, sempre calculando, definindo, medindo e pesando a lama, não poderia esquivar-se à furna sem a lama. É por isso que ainda não recobrou a visão perfeita. Munido dos velhos óculos de lodo, vê espinhos onde há dedos, garras em vez de mãos, e sombras onde há bênçãos de luz e sol.
A viúva bondosa enxugava o pranto copioso, até que o respeitável amigo sentenciou afetuosamente:
– Não chore, minha irmã. Lembre-se de que a perturbação agrava os males e de que a serenidade os resolve.
E, imprimindo singular acento às palavras, afirmou ao despedir-se:
– Sobretudo, que ninguém esqueça a lição preciosa de hoje. Quando Jesus revelou aos discípulos que a candeia do corpo são os olhos, destacava a importância do nosso desenvolvimento espiritual, pelo modo de ver. Quem se detenha exclusivamente no mal, apaga a lâmpada e foge à colaboração com a vida; mas, quem vive pelo bem, embora se aproxime do mal, consegue transformá-lo em coisa útil, porque encontrará possibilidades divinas em toda parte, cooperando com o Cristo para a luz eterna.
Em seguida à última observação, fez-se a prece de encerramento.
Os companheiros tinham os olhos molhados e, ao contrário do que se verificava em ocasiões idênticas, ninguém se aventurou a comentários. Cada qual tomou o seu caminho em profundo silêncio.
Irmão X