A Morte de Pio XI

Cercado de todas as honras pontificais, Pio XI agoniza...

De seus lábios exaustos, nada mais se ouve, além de algumas palavras ininteligíveis.

Seu coração está mergulhado na rede dolorosa das perturbações orgânicas, mas seu espírito está lúcido, como o de uma sentinela, a quem não se permite dormir.

Alvorece o dia...

Preparam-se os sinos de Roma para anunciar as matinas à antiga cidade dos Césares e o velho pontífice tenta, ainda uma vez, articular uma palavra que expresse a sua vontade derradeira.

Todavia, não obstante todas as dignidades sacerdotais e apesar de todos os títulos nobiliárquicos de um soberano terrestre, Sua Santidade se despede da vida material, sob os mesmos imperativos dos regulamentos humanos da Natureza.

A morte não lhe reconhece a soberania e a asma cardíaca lhe devora as últimas possibilidades de prosseguir na tarefa terrena, chamando-o a novos testemunhos.

Pio XI desejaria fazer algumas recomendações in extremis, mas sente-se invadido por uma corrente de frio inexplicável, que lhe paralisa todos os centros de força.

Os religiosos que o assistem compreendem que é chegado o fim de sua resistência e o Cardeal Lauri aproxima-se do moribundo, ministrando-lhe a extrema-unção, segundo as tradições e hábitos da igreja.

O papa agonizante experimenta, então, todas as angústias do homem, no instante derradeiro...

Aos olhos de sua imaginação, desenham-se os quadros nevados e deliciosos da Lombardia, na sua infância descuidada e risonha, os velhos pais, amorosos e compassivos, o pároco humilde que o animou para os estudos primeiros e, depois, as proveitosas experiências nas ondas largas e bravias do oceano do mundo, junto aos esplendores de Milão e de sua catedral majestosa...

Ele que orara, fervorosamente, tantas vezes, sentia agora uma dificuldade infinita para elevar o pensamento ao Deus de misericórdia e de sabedoria, que ele supunha no ambiente faustoso de seus templos frios e suntuosos...

Uma lágrima pesada lhe rolou dos olhos, cansados das penosas preocupações do mundo, enquanto o raciocínio se lhe perdia em amargas conjeturas.

Não era ele o Vigário Geral do Filho de Deus sobre a Terra? Sua personalidade não ostentava o título de Príncipe do Clero? Num derradeiro olhar, fixou, ainda nas próprias mãos, o reluzente anel, chamado do Pescador...

Desejou falar, ainda uma vez, aos companheiros, mergulhados em preces fervorosas, das meditações angustiadas da morte, mas percebeu que as suas cordas vocais estavam hirtas...

Foi quando, então, Pio XI começou a divisar, em derredor do seu leito de agonia, um compacto exército de sombras.

Algumas lhe sorriam com solicitude, enquanto outras o contemplavam com indefinível melancolia.

Ao seu lado, percebeu duas figuras veneráveis que o auscultavam, como se fossem médicos desconhecidos, vindos em socorro dos senhores Rochi e Bonanome, seus assistentes naquele dia.

Esses médicos do Invisível como que o submetiam a uma operação difícil e delicada...

Aos poucos, o velho pontífice romano sentiu que os olhos materiais se lhe apagavam amortecidos, mas, dentro de sua visão espiritual, continuava a perceber a presença de pessoas estranhas e que o rodeavam, dentre as quais se destacara um vulto simpático, que lhe estendia os braços, solícito e compassivo.

Pio XI não teve dificuldades em identificar a figura respeitável que o acolhia com benevolência e carinho.

--“Leão XIII!...“ --murmurou ele, no silêncio íntimo de seu coração, recordando os instantes gloriosos de seu passado eclesiástico.

Mas, a nobre entidade que se aproximava, abraçando-o, exclamou compassivamente: --"Aquiles, cessam agora todos os preconceitos religiosos que formavam a indumentária precisa ao cumprimento de tua grande missão no seio da igreja!...

Chama-me Joaquim Pecci, porque, como hoje te recordas de Désio e da infância longínqua, desejoso de recomeçar a vida terrestre, que terminas neste instante, também eu me lembrei, no momento supremo, de minha risonha meninice em Carpineto, ansioso de regressar ao passado para encetar uma nova vida, porque a verdade é que todos nós, em assumindo os sublimes compromissos com a lição do Senhor, prometemos realizar uma tarefa para a qual nos sentimos frágeis e desalentados, em nossas imperfeições individuais..." E como Aquiles Rátti revelasse estupefação, diante do fenômeno, continuou a entidade amiga: --"Levanta-te! Para o bom trabalhador há poucas possibilidades de repouso!..." Nesse instante, como se fosse tocado por um poder maravilhoso, Pio XI notou que o seu corpo estava rígido, ao seu lado.

Numerosos companheiros se aproximavam comovidos de seus despojos, inclusive o Cardeal camerlengo, que se tomava de profunda emotividade em frente da nova tarefa.

Procedia-se aos primeiros rituais, a que se obedece, em tais circunstâncias, no Vaticano, quando a voz de Leão XIII se fez ouvir de novo: -- "Meu irmão -- disse ele, austeramente -- todos nós somos obrigados a comparecer ante o tribunal que nos julga por todos os atos levados a efeito na direção da igreja a que chamamos, impropriamente, barca de S. Pedro...

Antes, porém, que sejas conduzido, pela legião dos seres espirituais que te esperam, ao tribunal dessas sentenças supremas, visitemos a nossa Jerusalém de pompa e de pecado, para nos certificarmos de suas ruínas próximas, ante a vitória do Evangelho redentor!...” 

Nesse momento, o Cardeal Pacélli retirava do cadáver o anel simbólico, enquanto as duas entidades, abraçadas uma à outra, se dirigiam à Capela Sistina e daí à famosa basílica de São Pedro, para as tradicionais e antigas orações.

Penetrando ambos sob as colunas grandiosas que suportam a larga varanda, dizia o autor da encíclica Rerum Novarum para o seu vacilante companheiro:

--"Outrora, neste local, erguiam-se o Templo de Apolo, o Templo da Boa Deusa, o Palácio de Nero e outras expressões de loucura e de crueldade que condenamos, até hoje, nas doutrinas do paganismo.

Os tesouros de Constantino e de Helena modificaram a fisionomia do santuário aqui erguido, quando o sangue e as lágrimas dos mártires semeavam as flores de Jesus-Cristo sobre a face escura da Terra!...

Em lugar da humildade cristã, levantaram-se no Vaticano as magnificências de ouro e de pedrarias...

” Atravessados os frontispícios suntuosos, as duas entidades ingressaram num ambiente parecido com os da história das "mil e uma noites", recamado de luxo fulgurante e indescritível.

Por ali, há o sinal dos artistas de todos os séculos.

Monumentos da pintura e da escultura de todos os tempos assombram os forasteiros espirituais que acompanham a cena grandiosa e melancólica.

As imagens, os altares, as colunatas, os anjos de pedra, os nichos suntuosos se multiplicam em deslumbramento maravilhoso.

Chegadas ao pé da magnífica estátua de São Pedro, talhada no antigo bronze da imagem de Júpiter Capitolino, que toda Roma venerava em épocas remotas, estátua essa idealizada sob as ordens de Leão Magno, quando das vitórias romanas sobre o gênio estratégico e belicoso de Átila, as duas entidades se detiveram, pensativas.

Obedecendo aos seus antigos hábitos, Pio XI ajoelhou-se e, ocultando o rosto entre as mãos, orava fervorosamente, quando uma voz sublimada e profunda lhe atinge em cheio a consciência, como se proviesse das ilimitadas profundezas do céu, chegando aos seus ouvidos por processo misterioso: 

--"Meu filho --exclamava a voz espiritual, na sua grandeza terrível e melancólica --como pudeste perseverar no mesmo caminho dos teus orgulhosos antecessores?...

Diante dessa estátua soberba, talhada no bronze de Júpiter Capitolino, toda a igreja romana supõe homenagear a minha memória, quando nada mais fui que simples pescador, seduzido pela grandeza celeste das sublimes lições do Senhor, no cenácu- Os Cristãos aproveitaram muitos dos templos, com as alfaias pagãs, para transformá-los em igrejas suntuosas.

Constantino foi o César Romano que adotou, oficializando-a a religião cristã.

Sua mãe, Helena, mais tarde canonizada pela Igreja, dispondo de grandes riquezas, muito ajudou a expansão e progresso do Cristianismo.

Visitando Jerusalém (em 325), fez construir a chamada igreja do Santo Sepulcro.

A ela, Helena, se atribui o encontro da verdadeira cruz na qual foi Jesus crucificado.

Onde se ergue hoje a grande basílica de S.

Pedro, em Roma, construída por aquiescência de Constantino, e enriquecida com muitos dos ricos despojos tomados dos infiéis, existia então um humílimo oratório subterrâneo.

Segundo a tradição, ali estava depositado o corpo de S. Pedro, que, em sítio próximo, sofrera o martírio pela fé.

Todo o local, atualmente Vaticano, era pouco habitado, por insalubre, atribuindo-se febres ao ar úmido lá respirado.

Por isso, embora vizinho do Circo e dos jardins de Nero, era quase deserto, permitindo que os cristãos ali se reunissem e ali guardassem os restos dos seus irmãos sacrificados nas perseguições ordenadas pelos sanguinários imperadores romanos.

Capitólio ou Monte Capitolino, que tinha então dois cumes, era uma das sete colinas de Roma, onde se viam vários templos, o Ateneu dos poetas, o Tabulário (onde se guardavam as leis) e obras de arte, inclusive o Arco de Cipião, o africano, e estátua equestre de Marco Aurélio, em um; no outro cume, a famosa cidadela, que Tácito declarava inexpugnável.

Quase tudo desapareceu.

Aí se erguia, em honra de Júpiter --o maior dos deuses --o considerado primeiro templo Romano.

Em seu lugar, foi mais tarde construída a Igreja chamada -- Ara Coeli, sob a invocação da Virgem Maria.

O que resta do Capitólio, em nossos dias, não dá idéia sequer do que foi, bastando salientar que o mesmo se acha constituído pela praça central, então denominada -- Entre-os-Montes, à qual se chega por uma escada magnífica, cujo desenho se deve a Miguel Ângelo, e onde figuram algumas das velhas e primorosas estátuas e colunas salvas das ruínas.

Elo de luz do Tiberíades!...

Convocado pelo Mestre Divino a edificar a minha fé, em favor do seu grande rebanho de ovelhas tresmalhadas do aprisco, não tive a força necessária para seguir-lhe o divino heroísmo, no instante supremo, chegando a negá-lo em minha indigência espiritual!...

Ainda assim, não obstante a minha fraqueza, foi a mim que a igreja escolheu para a homenagem dessas basílicas luxuosas, que, como esta imagem fulgurante, representam a continuidade das velhas crenças errôneas do império da impiedade, eliminadas pela suave luz das verdades consoladoras do Cristianismo!...

Somente agora, verificas a ilusão do teu anel do Pescador e da tua tiara de São Pedro!...

Eu não conheci outras jóias, nem outras riquezas, além daquelas que se constituíam de minhas mãos calejadas no esforço de cada dia!...

"Filho meu, amargurado está ainda o coração do nosso Salvador, em virtude do caminho escabroso adotado pela quase generalidade dos sacerdotes nas igrejas degeneradas, que militam na oficina terrestre!...

Todos os que se sentaram, como tu, nesses tronos de impiedade, prometeram ao céu a reforma integral dos velhos institutos romanos, em favor da essência do Evangelho, no pensamento universal; mas, como tu, os teus predecessores esbarraram, igualmente, no rochedo do orgulho, da vaidade e da impenitência, comprometendo o grande barco da fé em Jesus-Cristo, entre as marés bravias das iniqüidades humanas!...

"Falaste da paz: mas, realizaste pouco, ante o dragão político que te espreitava na sombra, naufragando nos conceitos novos que vestem as crueldades das guerras de conquista!...

"Reformaste o Vaticano, estabelecendo alianças políticas ou adotando as facilidades do progresso científico que enriquece a civilização desesperada do século XX; mas, esqueceste de levar aos teus míseros tutelados as fórmulas reais da verdade e do bem, da paz e da esperança, no amor e na humildade, que perfumam os ensinamentos do Redentor!...

"Grande sacerdote do mundo pelas tuas qualidades de cultura e pela generosidade de tuas intenções, serás agora julgado pelo tribunal que aprecia quantos se arvoram, na Terra, em discípulos do Senhor!...

Do mundo das convenções já recebeste todo o julgamento, com as homenagens políticas dos povos; agora, entrarás na luz do Reino de Deus, para aprenderes de novo a grande lição dos "muitos chamados e poucos escolhidos!...” 

Pio XI sentiu que o seu coração se despedaçava, em soluços atrozes.

Olhou em derredor de si e não lobrigou mais ninguém, a seu lado.

Todos os sorrisos compassivos dos companheiros da morte haviam desaparecido, sob o influxo de uma força misteriosa.

Quis contemplar a cúpula magnífica de seu templo soberbo, mas sentiu-se cercado de pesadas sombras, em cujo seio um firo cortante lhe enregelava o coração.

Foi assim que, penetrando a grande noite do túmulo, o grande sacerdote terrestre perdeu a noção de si mesmo, para despertar, em seguida, em frente ao tribunal da justiça divina, onde pontificam os mais íntegros de todos os juízes, dentro das leis misericordiosas do amor, da piedade e da redenção.


Humberto de Campos