Uma História que Não Foi Contada

A verdade é como a pérola que se oculta na escuridão da ostra. Um dia
seu brilho se expõe aos olhos do mundo."

Era o mês de festas em Bagdá, a cidade mais bela de todo o Islã.
Enquanto o muenzin, no alto da almenara, clamava os fiéis muçulmanos à última prece do dia, o velho mercador Sid-ben-Abdalah buscava nas letras do Alcorão, que julgava sagradas, a paz para a sua alma alquebrada pela dor de grande mágoa.
O antigo servidor do Profeta e mercador de peles da África Central, de sedas de Damasco, de tapetes da Pérsia e de especiarias da Índia, jamais perdera a fé em Deus.
Acumulara durante os anos de sua vida, considerável fortuna, viajando pelo deserto para comerciar com os berberes e até com os temidos tuaregues; transitando pelos bazares de Medina; dirigindo-se aos confins da Líbia ou comerciando no porto de Bássora.
Desejava, assim, assegurar o bem-estar do único filho, depois que a morte o levasse, embora o jovem fosse perdulário e irresponsável, a despeito da primorosa educação a ele conferida e dos exemplos de honestidade e honradez que tivera.
O Livro Sagrado era seu único companheiro, na úmida prisão do califado, onde, entristecido, recordava-se da ingratidão sofrida, da humilhação dolorosa, de que fora vítima e dos acontecimentos que o levaram à prisão. Mas, em breve, seria julgado e o seu destino ele entregava às mãos de Allah.
O jovem Omar Abdalah, filho de Sid-bem-Abdalah, endividara-se no terrível vício do jogo e dificilmente conseguiria saldar seus débitos, nos prazos concedidos pelos credores, sem que se entregasse, dia e noite, ao trabalho honesto que lhe pudesse render algum dinheiro.
"Trabalhar?!" - pensava consigo mesmo - "para que, se o velho possui muitos haveres: dinheiro, jóias, pratarias..."
Com esse pensamento e o medo das represálias dos credores, Omar envolveu seu velho pai numa trama bem calculada, que o levou à prisão por um crime que não cometeu.
No dia do julgamento, Omar foi chamado a depor e, na presença do Caádi, jurando dizer a verdade, em nome do Livro Sagrado, exclamou:
- Quero ser leproso! Que a lepra me venha consumir se eu não estiver dizendo a verdade. Reconheço, sim, a arma. É dele! - e apontava para o próprio pai. - Ele a portava no dia fatídico!
Na sala do divã todos conheciam o velho mercador e o sabiam bom e justo, contudo as evidências e o testemunho de Omar não o deixaram sair para a liberdade.
A sentença veio rápida: "Morte por enforcamento, quinze dias, a contar da data da sentença, permanecendo o corpo insepulto para servir
de exemplo e para o opróbrio público."
Oh! Irmão dos árabes!... o velho Sid-ben-Abdalah sofreu muito nos dias que antecederam à execução. Deixaram-no preso, a pão e água, dia e noite, numa gaiola de madeira dependurada no muro externo da prisão. Sol inclemente durante o dia e frio intenso nas horas noturnas; humilhação à luz do dia e solidão durante a noite. Por fim, a execução.
Com a morte do pai, Omar herdou e dilapidou todo o patrimônio.
Em breve a embriaguez, as noites indormidas e o remorso transformaram-no num mendigo comum, cambaleante, a implorar a caridade pública: - Bak shis!... bak shis Allah! (Uma esmola pelo amor de Deus!).
E a verdade, gradativamente, foi aparecendo aos olhos de todos, imperceptível, de início, nas manchas violáceas que se espalharam configurando-se como lepra irreversível por todo o seu corpo, consumindo-o dolorosamente até que a morte arrastou Omar para a sombria noite do túmulo.
Omar Abdalah despertou e não reconheceu o ambiente onde se encontrava; mas percebeu-se prisioneiro de extenso lodaçal, numa noite sem fim, sem a bênção do luar e o reconforto das estrelas. Uma baça claridade mal dava para ele enxergar à curta distância.
O silêncio aterrador era somente interrompido, a longos espaços, por alguma coisa como pios estranhos de aves agourentas.
Dores atrozes moíam seu corpo ulcerado e o cheiro nauseante que exalava de si próprio incomodava-o terrivelmente, a ponto de impedir-lhe o sono há tanto tempo desejado. Horrorizado, descobriu o desmantelamento de suas roupas e o desmoronamento de seu corpo.
Inconformado com aquela situação, blasfemava, esmurrando o ar, culpando a justiça divina por seu estado.
A dor e a humilhação foram tantas que, no auge do desespero, chorou longamente. Então, sem saber por que, lembrou-se do velho pai aprisionado no espaço exíguo de uma gaiola imunda dependurada ao escárnio público. E, no ápice da angústia veio a lembrança boa de sua infância, quando ouvia a voz paciente do pai lendo as páginas do Sagrado Livro; na adolescência, os conselhos sábios e na fase adulta, o
oferecimento da compreensão e da paciência. "Que saudade imensa daquele tempo!" - pensou ele - e não mais pôde resistir. Quase sem força e soluçando, exclamou: - Perdoa-me, meu pai!... perdoa-me!... em nome de Allah! - e desmaiou.
Não soube por quanto tempo permaneceu desacordado, mas, quando voltava daquele estado, asserenou, por fim, sua alma cansada, ao ouvir, novamente, a voz de Sid-ben-Abdalah e, ao sentir sua mão amiga afagando-lhe o rosto emagrecido e os cabelos emaranhados:
- Meu filho, asserena teu coração. O Pai Celestial te oferece a possibilidade de retificação de teus passos e a reparação dos teus erros. Retornarás aos caminhos do mundo e carregarás o pesado fardo que gratuitamente conquistaste; todavia, ser-te-ão também ofertadas energias suplementares, por misericórdia divina, para teu sustento. Conhecerás mais de perto a fome, as marcas dolorosas em tua pele e o
abandono, contudo estarei permanentemente ao teu lado a sussurrar-te aos ouvidos e ao coração os cânticos da paz que a oração nos empresta... Não te esqueças disto e guarda este momento no mais fundo de tuas lembranças.
"Agora, filho, adormece serenamente! Adormece, que velarei por ti. Vai, meu filho, e confia na proteção de Allah!"
Omar voltou à Terra trazendo, na vestimenta física, desde a infância, as marcas dolorosas de seus desatinos e, por várias existências consecutivas, assim vestiu seu espírito, mas sempre com a assistência amorosa do anjo abençoado de seus passos.
Séculos depois, liberto de suas dores maiores, seguro de seus objetivos e sob a orientação e amparo do seu amigo espiritual e protetor, voltou mais uma vez ao mundo e desta feita para dividir suas conquistas espirituais e seu amor, como médico humanitário, entre os abandonados leprosos, no coração do continente africano.
Uassalã!


Malba Tahan