De Longe

A morte não é o milagroso País do Sonho... É novo passo na jornada do Grande Ideal. E, da eminência do monte a que somos conduzidos pela Verdade, contemplamos o apagada Lilliput em que os homens se agitam.

Desenrola-se o panorama terrestre aos nossos olhos, mas não é a sátira ou o desprezo que provoca: é a piedade com o remorso dilacerante de não haver compreendido os pigmeus do orgulho e da vaidade, enquanto nos hospedamos em seu reino prodigioso de paixões e de brinquedos.

Quando passei do proscênio aos bastidores, e pude repetir a mim mesma as palavras “está representada a peça”, fino estilete de amargura se me cravou no coração.

Desapontara a platéia sem ajudá-la. Frisara-lhe em cores vivas o destempero, a maldade e a ignorância e a ferretoara com o aguilhão candente da crítica exacerbada.

Ante a grotesca figura dos heróis de mentira, dei asas livres à revolta e perdi a oportunidade de serviço construtivo, zurzindo os pavões e as gralhas, os abutres e os chacais, que comigo representavam, fantasiados em autêntica pele humana.

Ah! se eu fosse um palhaço ou um bufão! – pensei.

O riso, porém, dificilmente me aflorava à face. Confrangeu-me, desde muito cedo, a tragédia da alma no purgatório humano, pus-me a indagar de mim mesma a causa de tanta desgraça, e ante essa realidade terrena o pessimismo ressecou-me a fonte da alegria.

Detestava a superfície enganadora e – escafandrista da verdade – amava as profundezas do oceano da vida, olvidando – ai de mim! – que a incursão no leito lodacento das águas nos constrange a revolver inutilmente a lama do fundo.

Usando das fortes lentes da investigação, tateei as chagas do organismo social, assombrando-me o espetáculo da miséria de todos os tempos...

Descobri a imoralidade, a depravação, a baixeza, a libertinagem, o despudor, o vício sob todas as formas; entretanto, à maneira de Freud, que fez a diagnose espiritual da Humanidade, catalogando-lhe os complexos enervantes e sombrios, sem, contudo, lhe oferecer remédio providencial, igualmente indiquei o pântano e o espinheiro, sem traçar, por mim mesma, sólidas diretrizes para a sua extinção.

Condenei os abusos de nosso tempo, clamei contra o cativeiro que acorrentou a natureza simples e luminosa ao tronco da hipocrisia, esvurmei as feridas de nossas instituições, afrontando a ira e o escárnio dos Cresos e dos Tartufos, dos ditadores e dos salvadores, das comunidades e das igrejas, que afivelam máscaras sórdidas, e disso não me arrependo.

A verdade é uma fonte cristalina, que deve correr para o mar infinito da sabedoria.

A perfeição social será também obra-prima da vida.

Sem o buril robusto do verbo criador e regenerativo, a brutalidade da ignorância não cederá um milímetro à obra de beleza que nos cabe realizar...

Entretanto, gravando conceitos apaixonados contra os sistemas políticos e religiosos, esquecia-me de que o libelo mais admirável, sem a íntima luz da compreensão santificante a lhe clarear a estrutura, será sempre mera demagogia.

No meu peito pulsava um coração profundamente humano, retalhado de angústia na contemplação dos silenciosos e incessantes dramas do infortúnio; contudo, não consegui entesourar suficiente piedade para com os maus, adoçando a agrura de minha palavra atormentada e dolorida.

Se pude compor um cântico literário, destinado a exaltar os meus anseios de maternidade espiritual no mundo, guardo o pesar da frustração, por haver faltado dentro dele o acorde do entendimento.

A Terra é um paraíso no berço...

O Gênesis, pela voz de Moisés, conta que o Senhor, em pronunciando o fiat lux, apenas dividiu a claridade e as trevas,sem aniquilar a noite; e quando determinou que o solo produzisse, apareceram as ervas daninhas e as árvores frutíferas, esparzindo sementes, segundo a sua espécie.

E ainda nos empenhamos no combate às sombras, e ainda vivemos em plena seara verde, no domicílio planetário, até hoje...

Também relata o livro venerável que o Todo-Poderoso descansou ao sétimo dia, depois de estabelecida a instituição terrestre; entretanto, que repouso poderia haver para Adão decaído e Eva enganada, em suprema desesperação, após o banimento do Éden?

A vida humana é uma torre, que erguemos para o regresso à sublime pátria de origem; mas todos havemos de cozer o áspero tijolo da experiência e de preparar o cimento da verdadeira fraternidade com as próprias mãos, ligando-os na construção do edifício do aperfeiçoamento comum, e, então, saberemos e conquistaremos o direito de analisar com lucidez os fato em torno de nós.

Nesse aspecto da luta, o trabalho que pretendi executar foi incompleto.

Rendi sincero preito à religião do amor e da beleza e acreditei nos deuses interiores que nos dirigem os sonhos, mas oficiei com vinagre e fel no altar de meu culto.

Amor é perdão infinito, esquecimento de todo mal, lâmpada de silencioso serviço a todos, sem distinção, alimentada pelo óleo invisível da renúncia edificante...

Beleza é bondade fecunda, compreensão permanente, inalterável serenidade da alma para ajudar, sem restrições, a todos os romeiros da regeneração e da dor...

E os deuses interiores somente erguem tronos de luz em nossa inteligência, quando lhes situamos o Olimpo nos ideais mais altos do plano excelso...

Eis-me, porém, de coração novamente voltado para a floresta humana, agora não mais para dardejar-lhe as serpentes, apontar-lhe os despenhadeiros, regar-lhe com o petróleo da repugnância o charco das misérias sociais, mas, sim, para avivar-lhe as flores que hesitam em exalar o perfume da caridade, acolher-lhe as sementes no celeiro da fé e pensar-lhe as úlceras, aliviando os corações feridos que lhe atravessam os cipoais; eis-me de olhar pousado no futuro, aspirando por trabalho e paciência, a fim de auxiliar a todos os companheiros de peregrinação, nas dolorosas vias do aprimoramento.

Percebo, enfim, a sublime herança de todos os idealistas e de todos os mártires, dos pensadores e dos filósofos sacrificados...

Sinto agora a grandeza do fardo glorioso de quantos se imolaram para que o progresso comum conquistasse mais uma gota de paz ou mais uma fímbria de luz.

Entendo, presentemente, o envenenamento de Sócrates, o sofrimento de Jan Hus, a fogueira de Giordano Bruno, o extermínio de Servet, a execução de Bailly e os sarcasmos atirados à fronte de todos os campeões da prosperidade espiritual do mundo...

Sobretudo, compreendo hoje o madeiro da Cristo, que cimentou com suor, sangue e lágrimas o edifício da solidariedade mundial.

E em pensamento, arrojando-me ao chão adusto da velha Jerusalém de há quase dois mil anos, ajoelho-me entre o Divino Restaurador, içado ao poste oprobrioso, e a populaça irônica, digna de comiseração, e exclamo, tocada de novo ânimo para a vida renovada:

– Senhor, que eu respeitei e admirei, entre os heróis santificados nas sombras da Terra, e que hoje procuro amar com todas as fibras do meu coração, aberto ao sol da verdade, onde está a cruz redentora que deve enobrecer meus ombros?


Maria Lacerda de Moura