A Esmola da Compaixão
De portas abertas ao serviço da caridade, a casa dos Apóstolos em Jerusalém
vivia repleta, em rumoroso tumulto.
Eram doentes desiludidos que vinham rogar esperança, velhinhos sem consolo que
suplicavam abrigo. Mulheres de lívido semblante traziam nos braços crianças
aleijadas, que o duro guante do sofrimento mutilara ao nascer, e, de quando em
quando, grupos de irmãos generosos chegavam da via pública, acompanhando
alienados mentais para que ali recolhessem o benefício da prece. Numa sala
pequena, Simão Pedro atendia, prestimoso. Fosse, porém, pelo cansaço físico ou
pelas desilusões hauridas ao contacto com as hipocrisias do mundo, o antigo
pescador acusava irritação e fadiga, a se expressarem nas exclamações de
amargura que não mais podia conter.
- Observa aquele homem que vem lá, de braços secos e distendidos? - gritava para
Zenon, o companheiro humilde que lhe prestava concurso - aquele é Roboão, o
miserável que espancou a própria mãe, numa noite de embriaguez... Não é justo
sofra, agora, as conseqüências? E pedia para que o enfermo não lhe ocupasse a
atenção.
Logo após, indicando feridenta mulher que se arrasava, buscando-o, exclamou,
encolerizado:
- Que procuras, infeliz? Gozaste no orgulho e na crueldade, durante longos
anos... Muitas vezes, ouvi-te o riso imundo à frente dos escravos agonizantes
que espancavas até à morte... Fora daqui! Fora daqui!...
E a desmandar-se nas indisposições de que se via tocado, em seguida bradou para
um velho paralítico que lhe implorava socorro:
- Como não te envergonhas de comparecer no pouso do Senhor, quando sempre
devoraste o ceitil das viúvas e dos órfãos? Tuas arcas transbordam de maldições
e de lágrimas. . . O pranto das vítimas é grilhão nos teus pés. . .
E, por muitas horas, fustigou as desventuras alheias, colocando à mostra, com
palavras candentes e incisivas, as deficiências e os erros de quantos lhe vinham
suplicar reconforto.
Todavia, quando o Sol desaparecera distante e a névoa crepuscular invadira o
suave refúgio, modesto viajante penetrou o estreito cenáculo, exibindo nas mãos
largas nódoas sanguinolentas.
No compartimento, agora vazio, apenas o velho pescador se dispunha à retirada,
suarento e abatido.
O recém-vindo, silencioso, aproximou-se, sutil, e tocou-o docemente.
O conturbado discípulo do Evangelho só assim lhe deu atenção, clamando, porém,
impulsivo:
- Quem és tu, que chegas a estas horas, quando o dia de trabalho já terminou?
E porque o desconhecido não respondesse, insistiu com inflexão de censura:
- Avia-te sem demora! Dize depressa a que vens...
Nesse instante, porém, deteve-se a contemplar as rosas de sangue que
desabotoavam naquelas mãos belas e finas. Fitou os pés descalços, dos quais
transpareciam, ainda vivos, os rubros sinais dos cravos da cruz e, ansioso,
encontrou no estranho peregrino o olhar que refletia o fulgor das estrelas...
Perplexo e desfalecente, compreendeu que se achava diante do Mestre, e,
ajoelhando-se, em lágrimas, gemeu, aflito:
- Senhor! Senhor! Que pretendes de teu servo? Foi então que Jesus redivivo
afagou-lhe a atormentada cabeça e falou em voz triste:
- Pedro, lembra-te de que não fomos chamados para socorrer as almas puras...
Venho rogar-te a caridade do silêncio quando não possas auxiliar! Suplico-te
para os filhos de minha esperança a esmola da compaixão...
O rude, mas amoroso pescador de Cafarnaum, mergulhou a face nas mãos calosas
para enxugar o pranto copioso e sincero, e quando ergueu, de novo, os olhos para
abraçar o visitante querido, no aposento isolado somente havia a sombra da noite
que avançava de leve.
Irmão X