Consciência Ferida

Meus amigos.

Deus me ampare.

Depois de minha primeira visita, eis que torno à vossa casa, que funcionou para mim como um ninho de socorro e um tribunal de justiça.

Mulher padecente, trazia enlaçado em mim, qual se fora erva sufocante sobre árvore ferida, o espírito revoltado de meu próprio filho, cuja reencarnação impedi, num processo de aborto, no qual, por minha vez, perdi a existência.

Leviana e surda ao dever, adquiri compromissos com a maternidade, detestando-a.

E, por odiar o rebento que me palpitava no seio, procurei destruí-lo, usando venenosa beberagem que igualmente me furtou a vida corpórea.

Entretanto, se supunha que a morte fosse um ponto final à minha tragédia íntima, estava profundamente enganada, porque da poça de sangue a que me reduziram os despojos, levantou-se, diante de mim, uma sombra acusadora.

A princípio, dessa nuvem amorfa nascia o choro incessante de uma criança recém-nata.

Tentando emudecer aqueles vagidos angustiosos, inutilmente rezei, usando orações decoradas na infância...

A nuvem, porém, jazia algemada ao meu próprio peito, através de laços cuja consistência ainda hoje não posso definir.

Abandonei, amedrontada, o meu aposento de mulher solteira e, esquecendo o culto do prazer a que me dedicara, procurei fugir, como se eu pudesse escapar de mim mesma.

Perdi a idéia de rumo...

Esqueci o calendário.

De minha memória desapareceu a noção de tempo.

Guardava a consciência de que a nuvem e eu corríamos sem cessar...

Houve, contudo, um momento em que a sombra se converteu na forma de um homem, que me perseguia, amaldiçoando:

- Desnaturada! Assassina!... Assassina!...

Anelei, assim, depois da morte, a vinda de outra morte que me afundasse no esquecimento.

Sentindo sede, debruçava-me no charco...

Torturada de fome, atirava-me aos detritos dos animais mortos nos campos...

Ah! Como será possível adivinhar na Terra, enquanto a bênção do corpo físico é uma graça para o espírito que opera entre os homens, o tormento da consciência que edificou em si mesma o inferno que a envolve?

Minha existência passou a ser um suplício constante, terrível, inominável...

Chegou, todavia, a noite em que, à maneira de náufrago fatigado, vim dar à praia de vosso templo.

Mãos amigas apartaram-me da sombra agressiva a que me prendia, agoniada...

O alívio surgiu, por fim...

Entretanto, de alma conturbada, roguei esclarecimento para o meu desvario, embora conhecendo a minha culpa de pecadora penitente.

Recebi, de imediato, a resposta.

Um de vossos amigos(1) – justamente aquele que me acompanha aqui, nesta noite, com fins educativos – submeteu-me a longa intervenção magnética e, fazendo com que minhas reminiscências recuassem no tempo, vi-me no Rio, menina mal nascida, amparada por nobre mulher.

Para ser mais explícita, devo adiantar que essa criatura era Dona Mariana Carlota, a Condessa de Belmonte, aia do Imperador D. Pedro II, ainda criança.

Fui conduzida ao leito de pálida menina enferma, que morria pouco a pouco...

Essa menina era a Princesa Dona Paula, que se afeiçoou a mim, com natural carinho.

Mas, por morte dela, eu ficava aos treze anos novamente desamparada.

No entanto, benfeitores do palácio estenderam-me braços generosos e fui mantida em São Cristóvão, na posição de criada humilde.

Aos vinte de idade, desposei um artesão da Casa Real.

Miguel era o nome de meu marido.

Duas filhas vieram ao nosso encontro.

A tentação dos prazeres carnais, porém, fascinavam-me o espírito inferior.

Foi assim que aceitei a proposta indigna de um homem que me arrancou do lar para delituosa aventura.

Na tela de minhas recordações, surgiu então a noite do dia 4 de setembro de 1843, noite festiva que consagrou o casamento daquele que era o Imperador do Brasil.

Mulher moça, esposa e mãe, olvidei minhas obrigações e fui à procura de quem passara a ser o adversário de minha felicidade, a fim de receber-lhe a companhia, na Rua Direita, junto ao Arco do Triunfo, com o qual se comemorava a grande cerimônia.

O Rio, nessa data, acolhia a nova imperatriz dos brasileiros.

É necessário me detenha nesses fatos – esclarece o benfeitor que me auxilia -, para marcar em nossa lição que o tempo não desaparece com o passado, continuando vivo em nosso presente, como estará também vivo para nós, no grande futuro...

Na noite a que me reporto, fui surpreendida por meu esposo, numa atitude de desconsideração aos compromissos que abraçara.

Miguel não resistiu.

Respondeu-me à loucura com o suicídio.

Transformou-se-me, então, a vida.

Dificuldades sobrevieram.

Enjeitei minhas filhas.

Partilhei o destino do aventureiro que, em seguida à minha irreflexão, me atirou ao resvaladouro das mulheres de ninguém...

Entretanto, a sombra de meu companheiro suicida nunca mais se apagou de meus passos.

Seguiu-me, não obstante desencarnado, agravou-me as provações e reuniu-se a mim, quando me desliguei do corpo de carne, num asilo de alienados mentais, depois de atribulada peregrinação pelo meretrício.

Escuros tempos assomaram-me à lembrança.

O caminho expiatório é um trilho de sofrimentos e reparações, e nós éramos dois condenados, respirando a escuridão de noite profunda...

Uma noite imensa, povoada de gemidos, de blasfêmias, de dor... até que renasci na carne, novamente em corpo de mulher. Amando-me e odiando-me ao mesmo tempo, Miguel intentara ser meu filho, contudo, arruinei-lhe os propósitos, recusando a maternidade menos feliz, retornando nós dois, desse modo, às trevas de onde vínhamos.

Agora, tudo de novo, a recomeçar...

Um século, meus amigos...

Um século de um erro a outro erro...

Vede o martírio da mulher que em cem anos nada mais fez senão transviar-se por invigilância!

De 1943 até o ano findo, padecimentos novos me exacerbaram a luta, até que a prece e o amor me socorreram.

Venho, pois, compartilhar-vos a oração, a fim de que me renove, de modo a partir dignamente ao encontro do esposo que buscou reaproximar-se de mim, na condição de filho, para, de alguma sorte, ensaiarmos juntos a jornada reparadora.

Com a presente narrativa, não tenho outro intuito senão dizer-vos que a vida está continuando...

Que o trabalho não cessa...

Que o tempo não morre...

E que ai daqueles que caem, porque o soerguimento, muitas vezes, constitui fogo e fel no coração.

Sou um Espírito em reajuste.

Alguém que vos bate à porta, rogando amparo.

Pobre mulher que fala às outras, avisando-as quanto ao flagelo que nos aguarda, cada vez que o nosso coração foge aos princípios superiores da senda de elevação...

Expresso-me, assim, porque os homens, até certo ponto, são produto de nossa influência e domínio.

Os homens que nos partilham o leito, que se nutrem do pão que amassamos, que nos absorvem os pensamentos e que nos ouvem as palavras são nossos filhos e nossos irmãos, dependendo de nós para a vitória da Justiça e do Bem.

Que o Senhor nos dê consciência de nosso mandato! Que as companheiras presentes me ajudem com as suas preces, aproveitando igualmente a experiência aflitiva da mísera irmã que, em se perdendo, há tanto tempo, ainda não conseguiu recuperar-se...

Que Deus nos ilumine!...


(1) Refere-se a entidade a um dos Benfeitores Espirituais que nos assistem as tarefas. – Nota do organizador.


Maria da Glória