A Enferma

À doente se queixava em desespero, a senhora que lhe velava o leito perguntou:

- Permite que eu leia para seu reconforto algum pequeno trecho de Allan Kardec?

- Deus me livre! - gritou a enferma, cuspindo-lhe aos pés.

Ainda assim, as mãos abnegadas da companheira continuaram ajeitando-lhe os lençóis...

- Quero água! - exigiu a doente.

A amiga trouxe-lhe água pura e fresca.

De copo às mãos, a enferma, num ímpeto, atirou-lhe todo o líquido à face, vociferando:

- Água imunda!...

como se atreve a tanto?

Quero outra! 

Paciente e humilde, a senhora enxugou o rosto molhado e, em seguida, trouxe mais água.

- Quero chá.

E o chá surgiu logo.

- Chá malfeito! Chá frio! O conteúdo da taça foi projetado ao peito da outra, ensopando-lhe a blusa.

- Traga chá quente! Foi a ordem obedecida.

- Você aceita agora o remédio? - indagou a assistente.

- Que venha depressa.

Ao tomar, contudo, a poção, a dama inconformada agarra a colher e vibra um golpe no braço da amiga.

Surge pequeno ferimento, mostrando sangue.

E a enferma cai em crise de lágrimas.

Chora, chora e depois diz: 

- Anália, se a religião espírita que você abraçou é o que lhe ensina a me suportar com tanta calma, leia o que quiser.

A interpelada sentou-se.

Tomou "O Evangelho segundo o Espiritismo" e leu a formosa página intitulada A Paciência, no capítulo IX, que começa afirmando:

"A dor é uma bênção que Deus envia a seus eleitos..."

Acalmou-se a doente, que acabou aceitando o socorro do passe e o benefício da água fluída.

Conversaram ambas.

A enferma, asserenada, ouviu da companheira os planos que arquitetava para o futuro, em benefício dos meninos abandonados à rua.

No dia seguinte, ao despedir-se, a obsidiada em reequilíbrio beijava-lhe as mãos e dava-lhe os primeiros dois contos de réis para começar a grande obra.

Essa enfermeira admirável de carinho e devotamento era Anália Franco, a heroína da Seara espírita paulista, que se fez sublime benfeitora das criancinhas desamparadas.


Hilário Silva