Um Mal Chamado Impiedade
Um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo chama a atenção, entre tantos outros, é óbvio. Transcrevo o final do trecho, que está identificado no final da própria transcrição parcial: “(...) Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade”. – O Espírito da Verdade, Paris 1860 – em O Evang. Seg. o Espiritismo (capítulo VI, item 5), na edição IDE, com tradução de Salvador Gentille.
Ora, segundo o dicionário, impiedade quer dizer crueldade, desumanidade,
ausência de misericórdia. E o mais interessante é que o autor do convite
dirige-se aos espíritas, especificamente, como se pode apreender do parágrafo em questão.
É que ainda somos um tanto cruéis com os equívocos, tombos, desacertos e
dificuldades de nossos irmãos de ideal. Se alguém erra, por qualquer motivo,
somos apressados na crítica, no julgamento precipitado e nem consideramos as
décadas de acertos ou contingente de esforços daquele irmão que tanto lutou
para, agora, num momento difícil, equivocar-se. Basta fazer um retrospecto de
memória: quantas vezes deixamos de usar misericórdia diante dos equívocos
alheios?
E o mais curioso: muitas vezes somos impiedosos conosco mesmo. Erramos com
conhecimento de causa, reconhecemos o erro e entramos num processo de culpa de
largas proporções. Ora, tanto num como noutro caso, é preciso o esforço da
indulgência, da benevolência, do perdão, para que alcancemos o estágio de
equilíbrio diante das situações conflitantes. Isto nos remete a outro trecho da
mesma obra acima referida:
“(...) O mal-estar se torna geral. A quem responsabilizar, senão a vós mesmos,
que procurais sem cessar destruir-vos uns aos outros? Não podeis ser felizes sem
a mútua benevolência. E como a benevolência pode coexistir com o orgulho? O
orgulho! Está aí a fonte de todos os vossos males. (...) Por que tendes em tão
grande estima o que brilha e encanta os olhos em detrimento do que toca o
coração? (...) Quando a consideração que se concede às pessoas é medida pelo
peso do ouro que elas possuem , ou pelo nome que trazem, que interesse podem ter
estas pessoas em se corrigirem de seus defeitos? (...). O trecho é de Adolfo,
Bispo de Alger – Marmande, 1862 – e está em O Evangelho Segundo o Espiritismo
(capítulo VII, item 12).
O trecho nos traz a palavra benevolência, que significa: disposição bondosa de
promover a felicidade do outro, por generosidade. E apresenta um detalhe
extraordinário: Não podeis ser felizes, sem a mútua benevolência! (que
destacamos).
Eis o exercício que nos cabe prioritariamente nos dias atuais. Nós que dizemos
amar, que lutamos pela expansão do pensamento espírita, estamos esquecidos do
dever principal, entre nós mesmos. Por quê? Que direito detemos de julgar,
interferir, impor? Que autoridade possuímos? Somos todos aprendizes, novatos e
inexperientes.
Estas reflexões surgiram com o trecho colhido na Revista Espírita de março de
1867 (Edicel, tradução de Júlio Abreu Filho). Diz o texto assinado por Um
Espírito e intitulado Solidariedade, em transcrição parcial: “(...) O homem não
é um ser isolado, é um ser coletivo. O homem é solidário do homem. É em vão que
procura o complemento do seu ser, isto é, a felicidade em si mesmo ou no que o
rodeia isoladamente; não pode encontrá-lo senão no homem ou na humanidade. Então
nada fazeis para ser pessoalmente feliz, tanto que a infelicidade de um membro
da humanidade, de uma parte de vós mesmo, poderá vos afligir. (...)” E, mais
adiante, essa conclusão notável: “(...) O Espiritismo bem compreendido é para a
vida o que o trabalho material é para a vida do corpo. Ocupai-vos dele com este
objetivo e ficai certos de que quando tiverdes feito, para o vosso melhoramento
moral, a metade do que fazeis para melhorar a vossa existência material, tereis
feito a humanidade dar um grande passo”.
Ora, as últimas linhas do trecho transcrito trazem a chave da questão: o
aprimoramento moral redunda no respeito ao próximo que, por sua vez, traz a
essência dos ensinos dos Evangelhos e elimina a crueldade, a indiferença, a
impiedade, enfim, que tantos danos têm causado à tranqüilidade e progresso
humanos.
Matéria originariamente publicada no jornal O Clarim, edição de fevereiro de 2005.
Orson Carrara