Cegos para a Verdade
Jericó era uma cidade encantadora, bordada de flores e de
laranjeiras que periodicamente explodiam em festa de perfume, prenunciando a
frutescência. Rica em fontes e córregos, situada próxima ao rio Jordão e a
Jerusalém, constituía um dos orgulhos da Judéia.
A cidade antiga, hoje reduzida a ruínas calcinadas, data de época mui recuada, a
quase VII mil a. C. em pleno período neolítico. Destruída, inúmeras vezes, teve
as suas muralhas sempre reconstruídas, tendo sido palco da lenda, que se tornou
clássica, em torno das trombetas de Josué, que a teriam derrubado entre os anos
de 1.400 a 1.260 a. C. Sempre experimentou terríveis flagelos, como ocorreu por
volta do século XVII a. C., quando foi incendiada. Abandonada essa área
primitiva, foi reconstruída em lugar próximo por Herodes, que a aformoseou,
preservando toda a sua grandeza histórica.
Suas belas residências e mansões hospedavam pessoas ricas e cultas, que se
permitiam recepções faustosas e festas retumbantes.
Era quase passagem obrigatória entre a Galiléia e Jerusalém.
Muitas vezes Jesus a visitara, quando das suas jornadas à Cidade Santa para o
Seu povo. Ali mantivera contatos comovedores, havendo, oportunamente, penetrado
o coração e a mente astuta de Zaqueu, o cobrador de impostos, que se tornara
detestado pela cupidez e fortuna amealhada, mas que fora tocado pelas notícias
que dEle ouvira, havendo subido em uma figueira, a fim de vê-lO passar, quando
foi convocado a recebê-lO no seu lar...
É de uma estrada de Jerusalém, que conduzia a Jericó, que o Mestre comporá a
incomparável parábola do Bom samaritano, lecionando bondade sem alarde e amor
desinteressado, como recursos essenciais para entrar-se no Reino dos Céus.
Naquela cidade, portanto, famosa também pelas frutas secas e vinho capitoso,
Jesus operou fenômenos incomparáveis, tocando a sensibilidade das massas que O
acompanhavam, assim como de todos aqueles que ali residiam, e os presenciaram.
Pairava no ar o perfume balsâmico da Natureza em festa, e o Sol dourava os
campos ornados pelas flores primaveris. Havia uma festa de sons quase
inaudíveis, entoados pelo vento e pelo farfalhar das folhas dos arvoredos,
enquanto a taça de luz derramava claridade por toda parte.
O pó levantava-se, denunciando o movimento dos viajantes que se acercavam das
portas da cidade amuralhada ou que por elas saíam, estuante de beleza.
Formosas figueiras esparramavam suas copas vetustas projetando sombra agradável
no chão coberto de gramíneas verdejantes ornadas por miosótis miúdos e azuis.
Tudo formava uma bela moldura para os acontecimentos que se desenhavam em
perspectiva de felicidade no momento da saída de Jesus, que estava acompanhado
de grande massa de gentes de diferentes aldeias e dali mesmo por onde passara...
Ele estivera em Jericó e deixava os seus domínios.
A algaravia e ansiedade bailavam nos lábios e nos corações de todos aqueles que
O acompanhavam, como se desejassem expressar os seus ditos indizíveis.
Foi nesse momento, que dois cegos mendicantes à orla do caminho, ouvindo os
aranzéis e exclamações, os cânticos de gratidão e de júbilo, começaram a gritar,
pedindo socorro ao Mestre. Eles não conheciam as plumas coloridas do Sol, que
derramam claridade e cor na Terra, nem a face das pessoas amadas, nem o verde
dos campos ou o multicolorido das flores e dos pássaros, mas eram também filhos
de Deus, desejosos de participar do banquete de felicidade em que todos ali em
movimento se encontravam.
Faziam tal balbúrdia, que foram repreendidos para que se calassem. Como porém,
silenciar o sofrimento, perdendo a única oportunidade de libertar-se dele?!
Somente a necessidade sabe quanto é cruel a dor e quão tormentoso para o
invidente constitui seguir pela noite interna, sem contato com a luz do Dia.
Aqueles que os repreendiam possuíam visão e estavam disputando-se as moedas de
alegria que Ele distribuía. Era natural que também desejassem receber a mesma
oferta de felicidade, e não se calaram, antes aumentaram o vozerio, suplicando a
piedade do Senhor.
Jesus conhecia aqueles homens inditosos e aflitos. Era o Pastor, e se
identificava com todas as ovelhas que Lhe pertenciam.
Não fazia muito, libertara paralíticos da imobilidade, surdos da ausência de
sons, loucos da perturbação que os estigmatizava, por que não fazer o mesmo com
aqueles infelizes? Deteve-se, então, e aproximou-se deles. Todo luz, irradiava
misericórdia em cântico silencioso de amor.
Acercando-se dos requerentes de ajuda, interrogou-os: - Que quereis que vos
faça?
Era uma indagação lógica e própria do Seu caráter. Nunca se impunha, jamais
exigia. Sempre ouvia o problema do sofredor, antes de o ajudar a solucioná-lo.
Era o poema de ternura, que nunca perde a docilidade, nem se torna exigente.
E eles responderam, imediatamente: - Que nos restituas a visão, permitindo-nos
ver a claridade da luz.
Um silêncio incomum tomou conta da multidão. Jamais se cansariam aqueles
indivíduos de ver a ação incomum e de ouvir a mensagem libertadora, que não
souberam ou não quiseram utilizar conforme deveriam. No entanto, ali estavam, e
isso é o que importava.
O Senhor se aproximou suavemente e tocou-lhes os olhos apagados. Uma onda de
inexplicável energia penetrou-os, rompeu-lhes o véu da noite e a escuridão cedeu
lugar à luz que os invadiu, provocando a princípio uma grande dor, logo seguida
de inefável alegria... e O seguiram cantando hosanas!
A epopéia da Boa Nova, toda entretecida de lições verbais e de ações profundas
de libertação, alcançava o máximo de realizações, a fim de que todos soubessem
quem era o Cantor, e qual a canção que entoava, mas nem todos que O acompanhavam
podiam entender e abandonar tudo que lhes constituía cárcere e retenção para O
seguir depois em liberdade, embora anelassem por ela...
Jericó vira a cura do cego Bartimeu, que Lhe implorara a claridade exterior, mas
não se sabe do que lhe aconteceu depois, se mergulhou no oceano das claridades
espirituais ou se tombou nas sombras do prazer e da alucinação.
Zaqueu, também de Jericó, que O recebeu, quando lhe chegou a velhice e se
desincumbiu dos deveres familiares, entregou-se-Lhe, tornando-se testemunha
dEle, e narrando à posteridade a felicidade que lhe foi concedida ao tê-lO no
lar.
Os dois cegos do caminho recuperaram a visão, mas não se tem notícia de que se
houveram embriagado da luz da imortalidade, ou se volveram à treva densa da
alma...
O mundo de ontem, qual ocorre com o de hoje, estava dominado pela cegueira
interior para as verdades espirituais, e por isso, os homens e mulheres do
passado, perdidos na sombra de si mesmos, retornaram para o grande encontro com
a Verdade, que ainda postergam.
A mensagem dEle volve às Suas criaturas distraídas, que lamentavelmente não têm
ouvidos nem interesse para introjetá-la, tornando-a lição de vida atuante.
Iluminados pela ciência e pela tecnologia, com arsenais de filosofias e de
belezas, centenas de milhões vêem, mas são cegos para seguirem pelo caminho de
libertação que Ele continua apontando-lhes, por não identificarem que o seu piso
é argamassado pelo amor e as suas bordas são construídas pelo perdão e pela
caridade, conduzindo à paz.
Vêem, sim, mas não enxergam. Têm olhos que brilham, mas que ainda não perceberam
a luz do discernimento nem da misericórdia.
Dia virá, no entanto, que repetirá para a Humanidade, a cena da Sua saída de
Jericó, e os cegos bradarão: - Senhor, tem misericórdia de nós...
E Ele abrirá os olhos da alma de todos para a renovação e a vida eterna, no
mundo de hoje, que faz lembrar da Jericó de ontem.
Amélia Rodrigues