Questão de Justiça
E o velho amigo contou-nos, bem humorado, uma história em
torno dos comentários que enfileirávamos sobre a justiça do mundo:
- Um grande juiz, domiciliado num planeta onde o amor já solidificou suas bases
nos corações, foi indicado para vir à. Terra, a fim de verificar o progresso do
Direito entre os homens.
Grandes gênios da Espiritualidade Superior, desejando aferir os valores da
evolução terrestre, designaram-no para observar os fenômenos da consciência
reta, no círculo das criaturas.
Como estariam as nações terrestres, depois de Jesus - Cristo, o Celeste
Orientador justiçado na cruz? Achar-se-ia a comunidade social integrada no
ensinamento do "amai-vos uns aos outros"?
Grande civilização havia sido fundada, em nome do Mestre Inesquecível.
Sabia-se que a imagem do Senhor constava de múltiplos símbolos patrióticos, nos
santuários e nos parlamentos, nos lares e nas escolas...
Em nome do Cristo, lavravam-se documentos oficiais, expediam-se decretos e
instituíam-se programas educativos. . .
Como estaria sendo aplicada a substância do Evangelho na vida prática? Decerto,
o discernimento irrepreensível permanecia vigilante em todas as casas da direção
espiritual.
Para examinar essa realidade, o mensageiro devidamente credenciado vinha ao
mundo, revestido de poder para exprimir-se quanto ao assunto.
Atendendo, desse modo, ao objetivo que o trazia, acompanhamo-lo a uma grande
capital da Civilização moderna, ingressando, de imediato, num tribunal
movimentado, em que se processavam os serviços do julgamento de um homem
desvalido e sozinho.
O mísero comparecia, à frente do júri, por haver sido apanhado em delito de
furto.
Nós e ó emissário do Plano Superior ficamos a par da verdadeira situação do réu.
Espíritos amigos sustentavam-lhe a coragem moral e a luz da prece coroava-lhe a
fronte.
O desventurado pedia a Deus abençoasse a esposa doente e os quatro filhinhos
menores que curtiam dolorosas privações na furna de miséria que lhes servia de
lar, rogando o perdão da Providência Divina para o crime que cometera.
Roubara, sim... Assaltara um empório comercial, cedendo à tentação de
apropriar-se de alguns gêneros alimentícios para a subsistência da família, em
negro momento da sorte.
Reconhecia-se, porém, arrependido. Esperava recuperar-se e trabalhar.
Ultrapassara os quarenta anos, e, havendo falido no singelo empreendimento
agrícola a que se afeiçoara por muitos anos, vira-se condenado ao desemprego e
ao abandono. Ninguém desejava contratar a cooperação de um homem considerado
velho e inútil. Errara, por semanas e semanas, à caça de trabalho digno, mas
todas as portas cerravam-se, inflexíveis...
Enquanto a saúde lhe garantira a casa, tivera forças para sobrenadar... Contudo,
ante a mulher enferma e as crianças famintas, não encontrava recurso senão o de
mergulhar na escura corrente das idéias deploráveis que o seduziam ao furto...
Desertara da virtude, caíra lamentavelmente; entretanto, confiaria no porvir. O
Senhor ajudá-lo-ia a levantar-se...
A oração do réu doía-nos a alma. O examinador da justiça, comovido tanto quanto
nós, aguardou o veredicto, na expectativa de uma corrigenda benéfica, vazada'-
em estímulo à restauração moral do culpado.
Aquele pai sofredor poderia materializar ainda, no mundo, santificantes bênçãos
e a justiça 'não deveria incentivá-lo ao desespero e à revolta.
No entanto, com enorme desapontamento para nós, o infeliz foi sentenciado a
vinte anos de prisão.
-0uvindo os soluços convulsivos do infortunado, que reconhecia frustradas todas
as esperanças, o mensageiro do Alto tentou confortá-lo indiretamente e anunciou
que visitaria o dirigente do país, na suposição de conseguir um reajuste.
O tribunal parecia sombreado por estranhas perturbações. .
Provavelmente, inspiraria medidas adequadas à administração da metrópole que
visitávamos e a justiça surgiria no caso, nos moldes indispensáveis da
compaixão.
Seguimo-lo, sem detença, atingindo o formoso palácio da governança.
Talvez por coincidência, o magnífico solar vivia um dia de festa. Muita gente
ocupava-lhe as dependências. Carros suntuosos, de altas personalidades,
sucediam-se à porta. . .
Num salão, engalanado de flores, o governador foi identificado por nós, no
instante preciso em que, solene, à maneira de um semideus, chamava um homem de
nariz adunco e de olhos felinos e o condecorava sob aplausos gerais.
Alguém nos esclareceu em poucos segundos.
Era o homenageado um insensível oficial de guerra que planejara a morte de
milhares de homens, que depredara por conta própria, que se enriquecera à custa
da pilhagem, que espalhara o infortúnio em diversas direções e que manejara,
cruel, variados instrumentos de destruição.
Ao redor dele, centenas de entidades reclamavam, choravam, gritavam e gemiam,
crivando-o de maldições.
Era precisamente esse homem o herói da festa, glorificado pela autoridade máxima
da nação, com significativa medalha de honra.
O magistrado espiritual procurou comunicar-se, em espírito, com alguns dos
responsáveis, mas todas as atenções estavam centralizadas na ruidosa alegria do
ambiente, regada por numerosas taças de saborosa champanha,...
Vimos, então, o mensageiro do Alto, em atitude de profunda tristeza, a,
despedir-se com um gesto amável de adeus, remontando ao mundo feliz de onde
viera.
O narrador fez longa pausa... Afinal, quebrando o silêncio, alguém perguntou:
- Mas nunca mais receberam notícias do emissário desencantado? Como teria ele
respondido aos instrutores quanto à missão que lhe fora confiada?
O velho companheiro sorriu, demoradamente, e esclareceu:
- Tivemos notícias, sim... As interpelações dos Mentores da Vida Mais Alta,
notificou que havia algo errado na máquina da justiça humana e que, por isso,
rogava o prazo de quinhentos anos para continuar observando os homens, a fim de
responder...
Os comentários de nossa pequena assembléia continuaram acesos, mas o ancião
entrou em silêncio e, embora instado por nossas interrogações, calado e
sorridente, despediu-se de nós.
Irmão X