Antecedentes Históricos da Fenomenologia
“E a natureza de todos os outros seres, não crê, com Anaxágoras,
que é um espírito e uma alma que a ordenam e a mantêm?”
Sócrates, em Crátilo, 400 a.C.
À medida que se estuda os fenómenos paranormais vai-se firmando a crença de que eles são oriundos de uma segunda natureza do homem. São, em parte, o resultado da função psi.
Por sua vez, a função psi deve originar-se de algo que está intimamente associado à vida, uma vez que os animais parecem ser também dotados de faculdades paranormais.
Estando associada à vida, a função psi deve tê-la acompanhado desde o início. Assim pensava Rhine ao observar a profunda inconsciência de psi:
“Essa inconsciência, que nos indica acerca de psi? O mais importante, afora as dificuldades que opõe ao trabalho do investigador, é talvez o seguinte: para ser tão profundamente inconsciente como o são os fenómenos, o processo deve ser também extremamente primitivo; ou talvez, diria, fundamentalmente próximo aos processos básicos da vida, um processo que aparece nos começos do esquema da evolução. Cabe perguntar-se, então, se não seria anterior à origem, não somente da linguagem e da razão, se não inclusive das próprias funções sensoriais. Não estaria relacionado com as forças básicas que organizam a vida, com essas energias que dirigem a estruturação da célula e o padrão da forma e o crescimento dos organismos complexos em todo o domínio da natureza vivente?”(1).
Nós acrescentaríamos o seguinte: não seria também a função psi a origem dos primitivos cultos mágico-religiosos, das tradições iniciáticas, dos mitos e das religiões mais antigas?
Mircea Eliade admite que a existência de um certo tipo de xamanismo na época paleolítica parece assegurada. Ele considera que o “êxtase”, os “sonhos acordados”, o “transe”, enfim a perda de consciência que se interpretava como uma viagem da alma ao Além era um fenómeno constitutivo da condição humana(2).
Sabemos, actualmente, que os estados alterados de consciência facilitam a produção dos fenómenos paranormais. Há uma correlação entre tais estados e a intensificação das funções paranormais. É facto aceite que a maioria dos fenómenos paranormais ocorrem durante certas fases do sono.
Há uma forte probabilidade de que os povos paleolíticos já houvessem presenciado fenómenos paranormais e que, entre os paleantropídeos, tenham surgido espécimes superdotados de função psi. Os indícios mais marcantes deste facto são os desenhos encontrados no interior das grutas paleolíticas. Tais figuras representam cenas de caçadas e de cerimónias mágicas relacionadas com as mesmas. Outros sinais típicos são os cuidados com os mortos, a forma de sepultá-los e de os colorir antes da inumação. Há, finalmente, o culto dos crânios e das pedras onde, parece, os paleantropídeos acreditavam que pudesse alojar-se a alma dos que morriam.
O culto das pedras é a mais intrigante das práticas paleolíticas. Os primitivos cavernícolas usavam representar a efígie humana por meio de seixos pintados com desenhos, configurando-a esquematicamente. Em forma mais específica e sofisticada, faziam também estatuetas, esculpindo-as no barro, na madeira ou em osso. Mas o uso das pedras era mais corrente. Colocavam essas representações antropomórficas nas proximidades do fogo que acendiam para aquecer-se. Este costume ficou evidenciado pelo normal chamuscamento observado em tais objectos, mostrando que eles participavam do calor das lareiras.
Qual a razão desta singular prática, que revelava a intenção de proporcionar àquelas figurinhas de pedra o conforto do aquecimento de que usufruía a família do homem das cavernas? Parece plausível admitir que aqueles nossos longínquos antepassados deviam crer na existência da alma e procuravam fixá-la naquelas representações rudimentares, fazendo-as beneficiar-se do calor reconfortante.
Através de estudos comparativos com outras culturas contemporâneas, mas situadas ao nível paleolítico, os antropólogos tornaram-se quase unânimes em aceitar que o paleantropídeo acreditava na sobrevivência da alma e na possibilidade de fixá-la em objectos materiais tais como as pedras. Mais recentemente encontramos outros factos que poderão dar maior consistência a esta hipótese. Trata-se dos fenómenos de poltergeist.
Na esmagadora maioria desses fenómenos observam-se as “quedas de pedras”. É raro o poltergeist em que não ocorra o apport de pedras. É o caso de indagar se não seriam fenómenos semelhantes que teriam provocado, entre os primitivos homens das cavernas, a crença de que algo estaria a animar as pedras atiradas ou transportadas pelos poltergeists. Não seria esta a forma primitiva de um desencarnado chamar a atenção de seus parentes ou companheiros? Naqueles longínquos tempos, na aurora da Humanidade, certamente tais fenómenos poderiam ter ocorrido com a presença de um “epicentro” paleolítico.
É difícil separar as tradições religiosas da Humanidade das funções paranormais existentes nos seres vivos, particularmente nos homens. Os êxtases, os sonhos, os transes, a telepatia, a precognição, a clarividência e a psicocinesia deviam ter representado um papel preponderante entre os homens primitivos. Talvez os houvessem ajudado a sobreviver, facilitando-lhes achar a caça ou pressentir os perigos iminentes.
Milhares e milhares de anos se passaram. As culturas foram-se sucedendo, as civilizações foram surgindo, mas o homem conservou os seus hábitos religiosos e os seus cultos. Criaram-se práticas iniciáticas secretas, onde um grupo discreto de adeptos desenvolvia as suas faculdades paranormais e aprendia os mistérios ocultados ciosamente aos olhos e ouvidos dos profanos.
Foi assim que começaram as grandes religiões. Todas elas tiveram duas faces, uma exotérica, consistindo em práticas rituais exteriores, e outra esotérica, compreendendo o desenvolvimento de determinadas funções para-normais. Em todos os códigos da Antiguidade, porém, proibia-se a prática da “magia negra”, revivescência dos cultos primitivos, das práticas populares arcaicas, nascidas do fenómeno paranormal puro.
Os períodos subsequentes
Charles Richet (Traité de Métapsychique) distinguiu, na história da fenomenologia parapsíquica, quatro períodos. A saber:
1. O Mítico, que vai da Antiguidade até Mesmer (1778);
2. O Magnético, que vai de Mesmer às irmãs Fox (1847);
3. O Espirítico, que vai desde as irmãs Fox até William Crookes (1847/1872);
4. O Científico, que começa com William Crookes (1872).
Richet esperava que o seu Traité inaugurasse um quinto período: o Clássico (3).
Richet reconheceu que as fontes informativas históricas, embora conseguissem trazer muito esclarecimento acerca da ampla fenomenologia que teria ocorrido na Antiguidade, não poderiam servir muito a um enfoque científico de tais fenómenos. Concordamos com Richet, entretanto, achamos que a história dos xamãs, dos feiticeiros, das pitonisas, dos adivinhos, dos santos, dos magos e dos profetas podem aduzir evidência a favor da tese de que o homem não é feito só de matéria. Deve existir uma componente ou factor psi, nos seres vivos, particularmente nos homens, que influiu no seu comportamento de modo a tornar uniforme, no espaço e no tempo, as ocorrências paranormais relatadas pela História. Quanto mais antiga uma cultura ou uma civilização, tanto maior a influência das crenças nas suas tradições e em seus costumes.
A Bíblia e os fenómenos paranormais
O Velho e o Novo Testamento estão cheios de relatos que revelam a ocorrência de fenómenos paranormais surgidos naqueles tempos. As aparições e as comunicações dos espíritos eram frequentes. Os profetas deviam ser, na realidade, excelentes médiuns.
Sabemos que a Bíblia sofreu diversas alterações desde as suas origens até ao advento da Imprensa. Após o cativeiro na Babilónia, por ordem de Cyro, os judeus retornaram a Jerusalém. Ocorreu, então, uma verdadeira reconstrução daquela nação. O templo foi reedificado, após a devolução dos tesouros sagrados. Coube a Esdras – “escriba versado na lei de Moisés, que Jehovah, Deus de Israel, tinha dado” – proclamar o édito em favor dos judeus (Esdras, VII). Foi Esdras quem reconstituiu de memória a tradição que se havia praticamente perdido durante os anos de cativeiro: “Porque tinha preparado o seu coração para buscar a lei de Jehovah e cumpri-la e para ensinar em Israel estatutos e juízos”. (Esdras, VII: 10).
Esdras deve ter reescrito, aproximadamente no ano 444 a.C., os seguintes livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio.
Mas este facto não diminui a evidência de que na Bíblia se podem encontrar notícias da manifestação de fenómenos paranormais. Pelas descrições podem identificar-se facilmente as diversas modalidades dessas ocorrências. Por conseguinte, os relatores das passagens bíblicas já deviam ter tido informações acerca de tais fenómenos e da possibilidade de eles acontecerem.
O daemon de Sócrates
Charles Richet, em seu Traité, refere-se ao episódio do “Daemon de Sócrates”, transcrevendo uma interessante passagem do “Theageta” – um dos diálogos de Platão – que reproduziremos a seguir. Neste diálogo, Sócrates teria dito: “Desde a minha infância, graças ao favor celeste, sou acompanhado por um ser quase divino, cuja voz me desaconselha algumas vezes de empreender qualquer coisa, mas jamais me obriga a executar tal ou qual acção. Conheces Charmides o filho de Glaucon. Um dia ele disse-me que desejava disputar o prémio dos jogos nemeanos... Procurei dissuadir Charmides do seu intento, dizendo-lhe: Enquanto me falavas, ouvi a voz divina... Não vás a Neméa! Ele não quis escutar-me! Pois bem! Sabes que ele sucumbiu”.
Richet explicou no seu livro que esse “daemon” foi aquilo que, em linguagem espírita, se chama de um guia. (4)
Prossegue Richet, citando outra referência ao “Daemon de Sócrates”, desta vez na Apologia de Sócrates, por Xenofonte, na qual Sócrates diz o seguinte: “Esta voz profética fez-se ouvir a mim em todo o curso de minha vida; ela é certamente mais autêntica do que os presságios tirados dos voos ou das entranhas dos pássaros: eu chamo-o de Deus ou Daemon. Tenho comunicado aos meus amigos as advertências que recebi. E até ao presente, a sua voz jamais afirmou algo que tenha sido inexato”. (opus cit. p. 17).
Sócrates insistiu constantemente que as predições de seu génio familiar sempre foram verificadas.
Plutarco referiu-se também ao episódio do “guia” do sábio filósofo: “Sócrates tendo um entendimento puro e limpo, era fácil de ser tocado por aquilo que o atingia, e aquilo que o atingia, nós podemos conjecturar, era não uma voz ou um som, mas a palavra de um daemon que tocava sem voz a parte inteligente de sua alma. As inteligências dos daemons, tendo sua luz, resplandecem para aqueles que são susceptíveis e capazes de tal clarão, não tendo necessidade nem de nomes nem de verbos, dos quais usam os homens ao falarem uns aos outros, por cujas marcas eles vêem as imagens das inteligências uns dos outros, mas as próprias inteligências, eles não as conhecem, senão aqueles que têm uma luz divina e própria”. (Opus cit. p. 18).
Neste episódio da vida de Sócrates podemos assinalar ocorrências paranormais semelhantes às que conhecemos actualmente.
O fantasma de Brutus
Ainda no Traité de Charles Richet, extraímos o singular acontecimento ocorrido com Brutus e relatado por Plutarco (Vidas dos Homens Ilustres):
“Uma noite, bem tarde, todo o mundo achando-se adormecido dentro do seu acampamento, em grande silêncio, assim que ele se achava no seu pavilhão com pouca luz aconteceu-lhe ter ouvido entrar alguém e, lançando sua vista à entrada do seu pavilhão, percebeu uma maravilhosa e monstruosa figura de um corpo estranho e horrível o qual foi postar-se diante dele sem dizer palavra; mesmo assim teve bastante coragem para perguntar-lhe quem era ele, e se era deus ou homem, e que oportunidade o conduziu até lá. O fantasma respondeu-lhe: “Eu sou teu anjo mau, Brutus, e tu me verás perto da cidade dos Filipenses. Brutus, sem de qualquer modo perturbar-se, respondeu-lhe: Está bem, pois eu ver-te-ei lá. O fantasma incontinenti desapareceu e Brutus chamou seus subalternos, os quais lhe disseram não haverem ouvido, nem visto qualquer visão”. (opus, cit. pp. 19 e 20).
De facto, perseguidos por António e Octaviano, Brutus e seu amigo Cássio foram vencidos nos campos de Filipos, na Macedónia (42 a.C.). Desesperado por não poder salvar a República, Brutus lançou-se sobre a ponta de uma espada que lhe trespassou o corpo.
O mau presságio do fantasma cumpriu-se à risca.
Fase do ocultismo
Houve um período em que o trato simultâneo com as funções e fenómenos paranormais e com as tradições mágico-religiosas produziu um movimento ocultista que predominou no Ocidente, do qual restou muita coisa ainda actualmente. A Igreja católica romana trouxe uma grande contribuição a este movimento. Alguns nomes de grandes vultos ficaram na História, tais como Albertus Magnus, Meister Eckart, Thomas Kempis, Eliphas Levy, Paracelso – cujo nome todo era Auroelus Philippus Theophrastus Paracelsus Bombast von Hohenheim –, John Dee e vários outros.
É importante assinalar que, embora os ocultistas não tratassem especificamente dos fenómenos paranormais, quase todos davam a impressão de serem sobredotados de função psi e desenvolveram os seus trabalhos e doutrinas dentro da crença em fenómenos que hoje se enquadrariam dentro dos paranormais. Vamos tomar como exemplo Paracelso (1493/1541). Ele foi médico e considerado o precursor da medicina moderna, da microquímica, da assepsia, da cirurgia e da homeopatia. Entretanto, ele foi filósofo hermético e alquimista, discípulo do ocultista, teólogo e historiador alemão abade Johannes Trithemius von Heidenberg (1462/1516) e, provavelmente, dos alquimistas Trismosin e Valentino.
Supôs-se que as ideias de Paracelso hajam influído na formação das ideias básicas da Ordem Rosacruz, fundada na Alemanha, no século XIII, por Christian Rosenkreutz.
A fase do ocultismo é muito importante e lamentamos ter de tratá-la tão resumidamente. Foi ela que produziu os famosos adeptos do “magnetismo”, dos quais ainda Paracelso foi um dos precursores.
Conclusão
No próximo número iremos apresentar o período do magnetismo, considerado como o segundo na história da fenomenologia parapsíquica, cujo início foi desencadeado por Franz Anton Mesmer (1733/1815).
Ao passar em revista as ideias e teorias desenvolvidas naqueles tempos do ocultismo, da alquimia e das práticas médicas inortodoxas, pode sentir-se que há, actualmente, uma tendência para se reeditarem as mesmas filosofias do passado, as mesmas crenças que predominaram então. Os actuais movimentos rotulados de parapsicológicos, psicobiofísicos, psicobioenergéticos e quejandos estão a reeditar as velhas doutrinas ocultistas, respaldadas agora pelas conquistas científicas da moderna parapsicologia.
Os costumes, a moda e as ideias sempre retornam e, em cada turno, surgem mais abrilhantadas e melhor fundamentadas.
Será que são os costumes, a moda e as ideias que retornam, ou são os homens que voltam periodicamente à cena, no iminente palco da vida?
Hernani Guimarães Andrade