O Homem e o Boi
Um anjo de longínquo sistema, interessado em conhecer os
variados aspectos e graus da razão na inteligência Universal, pousou
num campo terrestre e, surpreso ante a paisagem, aí encontrou um homem
e um boi. Admirou as flores silvestres, fixou os horizontes coloridos
de sol e rejubilou-se com a passagem do vento brando, rendendo graças
ao Supremo Senhor. Como não dispunha, todavia, de mais larga parcela
de tempo, passou à observação direta dos seres que povoavam o solo,
aferindo o progresso do entendimento no orbe que visitava.
Examinou as pupilas do homem e descobriu a inquietação da maldade.
Sondou os olhos do boi e encontrou calma e paz.
Usando o critério que lhe era particular, conclui de si para
consigo que o boi era superior ao homem. Consolidou a impressão
quando, para experimentar, pediu mentalmente aos dois trabalhassem em
silêncio. O animal respondeu com perfeição, movimentando-se, humilde,
mas o companheiro bípede gritou, espetacularmente, proferindo nomes
feios que fariam corar uma pedra.
Um tanto alarmado, o anjo recomendou paciência.
O educado bisneto da selva continuou trabalhando,
imperturbável e tolerante. Todavia, o irrequieto descendente de Adão
estalou um chicote, ferindo as ancas do colaborador de quatro patas.
Acabrunhado agora, diante da cena triste, o sublime
embaixador pediu atitudes de sacrifício.
O servo bovino obedeceu, sem qualquer relutância, revelando
indiscutível interesse em ser útil, distraído das próprias chagas.
O administrador humano, contudo, redobrou a crueldade,
recorrendo ao ferrão para dilacerar-lhe, ainda mais, a carne
sanguinolenta...
Sensibilizadíssimo, o fiscal celeste anotou o que supôs
conveniente aos fins que o traziam e afastou-se, preocupado.
Não atravessara grande distância e encontrou uma vaca em laço
forte, com outro homem a ordenhá-la.
Sob impressão indefinível, emitiu apelos à renúncia.
A mãe bovina atendeu com resignação heróica, prosseguindo
firme na posição de quem sabia sacrificar-se, mas o ordenhador, antes
que o emissário de cima os analisasse, de perto, porque certa mosca
lhe fustigava o nariz, esbofeteou o úbere da vaca, desabafando-se. O
funcionário dos altos céus, compadecido, acariciou a vítima que se
movimentou alguns centímetros, agradavelmente sensibilizada. O
tratador, porém, berrou desvairado, caluniando-a...
Queres escoucear-me, não é? Gritou, diabólico.
Ergueu-se lesto, deu alguns passos, sacou de bengala rústica
e esbordoou-lhe os chifres.
Emocionado, o anjo vivificou as energias da vaca, aplicando o
seu magnetismo divino, rogou para ela as bênçãos do Altíssimo,
empregou forças de coação no agressor, conferindo-lhe salutar dor de
cabeça, efetuou os registros que desejava e retirou-se.
Prestes a desferir vôo, firmamento a fora, encontrou um gênio
sublime da hierarquia terrena.
Cumprimentaram-se, fraternos, e o fiscal divino comentou a
beleza da paisagem. Não ocultou, porém, a surpresa de que se possuía.
Relacionou os objetivos que o obrigaram a parar alguns
minutos na Terra e rematou para o irmão na pureza e na virtude:
Estou satisfeito com a elevação sentimental das criaturas
superiores do Planeta. Cultivam a generosidade, renunciam no momento
oportuno, trabalham sem lamentações e, sobretudo, auxiliam, com
invulgar serenidade, os inferiores.
O anjo da ordem terrestre silenciou, espantado por ouvir tão
rasgado elogio aos homens. O outro, no entanto, prosseguiu:
Tive ocasião de presenciar comovedores testemunhos. Pesa-me
confessá-lo, porém: não posso concordar com a posição dos seres mais
nobres da terra, que se movimentam ainda sobre quatro pés, quando
certo animal feroz, que os acompanha, agressivo, já detém a leveza do
bípede. Naturalmente, sabe o Altíssimo o motivo pelo qual
individualidades tão distintas aqui se encontra, unidas para a
evolução em comum... Tenho, contudo, o propósito de apresentar um
relatório minucioso às autoridades divinas, a fim de modificarmos o
quadro reinante.
Assinalando-lhe os conceitos, o companheiro solicitou
explicações mais claras. O anjo estrangeiro convidou-o a verificações
diretas.
O protetor da Terra, desapontado, esclareceu, por sua vez,
ser diversa a situação: o bípede é na crosta Planetária o Rei da
inteligência, guardando consigo a láurea da compreensão, sendo o boi
simples candidato ao raciocínio, absolutamente entregue ao
livre-arbítrio do controlador do solo. Acentuou que, não obstante
operoso e humilde, o cooperador bovino gastava a existência servindo
para o bem, e acabava dando os costados no matadouro, para que os
homens lhe comessem as vísceras...
O forasteiro dos céus mais altos, sem dissimular o assombro,
considerou:
Então, o problema é muito pior...
Pensou, pensou e aduziu:
Jamais encontrei um planeta onde a razão estivesse tão degradada.
Despediu-se do colega, preparou o afastamento definitivo sem
mais delonga e concluiu:
Apresentarei relatório diferente.
Mas ainda não se sabe se o anjo foi pedir medidas ao Trono
Eterno para que os bois levantem as patas dianteiras, de modo a
copiarem o passo de um herói humano, ou foi rogar providências aos
Poderes Celestiais a fim de que os homens desçam as mãos e andem de
quatro, à maneira dos bois...
Humberto de Campos