No Banquete do Evangelho
Dizia Luciano de Samosata que a vida humana deve valer, não
pela sua extensão, mas pela sua intensidade de sofrimento.
No plano dos homens desencarnados, somos compelidos a renovar esse conceito, na
tábua de um novo reajustamento, acrescentando que a existência do homem deve
valer pela intensidade da sua edificação espiritual.
Não basta sofrer desesperadamente, como o náufrago revoltado, recolhido na onda
de sua própria imprevidência.
É necessário conhecer a finalidade da dor, lapidária da evolução e eterna
obreira do Espírito.
A morte não é sinônimo de renovações integrais e definitivas.
Para o homem que demandou o reino das sombras, ainda existe o véu de Ísis, e, no
seu coração, ainda ressoam as célebres exortações do oráculo de Delfos.
Encontramo-nos "neste outro lado da vida", com as mesmas inquietações e com a
mesma necessidade de aperfeiçoamento.
E, não raro, sentimo-nos envolvidos na rede caprichosa dos cálculos de Édipo,
ansiosos por solver os problemas próprios.
Não obstante o milagroso elixir das letras, do qual abusei largamente no mundo,
sinto-me hoje tão necessitado de conhecimento, como nos tempos da infância, em
Miritiba, quando minha mãe me conduzia à férula do velho professor Agostinho
Simões, que me apavorava com os seus gestos selvagens, junto da palmatória.
A escola do mundo tem aqui o seu prolongamento lógico e é inútil que o nosso
pensamento se perca nas cogitações da dúvida, agora injustificável pela ausência
da indumentária larval.
Examinando o Evangelho, nada mais realizais que um belo esforço, em favor de
vossa iluminação nas sendas do Infinito.
Sois aqueles marinheiros precavidos e seguros que, entre os rochedos perigosos e
ocultos da maré brava, sabem enxergar o leque de luz que os faroleiros desdobram
sobre as águas, na sua doce tarefa de sacrifício.
Ides ler uma página acerca das conseqüências nefastas do orgulho, analisando,
simultaneamente, a harmoniosa luz da humildade.
A propósito do assunto, ocorre-me lembrar-vos que nós, os intelectualistas e
homens de letras, possuímos aqui, igualmente, os nossos círculos espirituais de
estudos evangélicos, em horas previamente determinadas pelos generosos amigos
que nos orientam do Alto.
Se é verdade que as reuniões das quintas-feiras, na Academia Brasileira de
Letras, eram o último encanto intelectual dos derradeiros dias de minha vida,
agora, a minha nova alegria verifica-se às quartas, quando de nossas assembléias
deliciosas e amigas, no Templo de Ismael.
Se no mundo prevaleciam as expressões ruidosas da ornamentação exterior, com os
fardões acadêmicos, os pesados livros de literatura ou de ciência, junto das
mulheres elegantes e gozadoras da vida, o meu júbilo, no momento, é mais íntimo
e mais profundo, porquanto, aqui, preponderam as harmonias do bem e as luzes da
humildade cristã.
Nessas reuniões, por várias vezes, emergem ainda as recordações da Terra,
acordando o fantasma de nossa saudade morta; porém, a Verdade de Jesus está
sempre brilhando, com o sagrado objetivo de nos ensinar o caminho, nos arquivos
do Tempo.
Ainda no dia 31 de maio último, reuníamo-nos na Casa de Ismael, aguardando o
banquete de iguarias espirituais.
Discutíamos a moção apresentada pelo Dr.
Carlos Fernandes, em nome da Sociedade de Medicina e Cirurgia, ao Ministério da
Educação, reforçando a propaganda da "Hora Espírita Radiofônica" e assegurando
mais essa vitória espiritual em nosso ambiente cultural.
Comentávamos os acontecimentos do Rio e falávamos de suas personalidades mais
eminentes, buscando, de vez em quando, uma imagem mais forte no acervo das
ciências humanas, para justificar esse ou aquele conceito.
Presidia à nossa assembléia a figura austera e simples de Pedro Richard,
entidade amorável e amiga, em cujo coração fraterno encontramos as edipo -- Cujo
Destino seria assassinar o pai e casar-se com sua própria mãe (segundo os
oráculos), foi, por esse motivo, abandonado num monte, e daí salvo e educado em
corte estrangeira.
Ignorando sua origem, quando adulto pediu ao oráculo a sua profecia, e este lhe
repetiu o que já outro prognosticara.
O edipo, para fugir a tão horrendo crime, exilou-se, e o Destino o guiou
exatamente para junto dos pais, onde se cumpriu, sem que ele os conhecesse, a
terrível predição.
É uma das mais interessantes, acidentadas e emocionais criações da Mitologia.
Poetas, músicos e pintores tomaram-na para assunto de notáveis e célebres
trabalhos.
Dia de sessão do Grupo "Ismael", núcleo espiritual da Federação Espírita
Brasileira.
As melhores expressões de fraternidade em todos os dias.
Richard não é o Espírito que trouxe do mundo a súmula dos tratados e das
enciclopédias que correm os ambientes intoxicados do século, com as pretensões
mais descabidas.
Seu coração não se contaminou com o veneno do intelectualismo pervertido dos
tempos que correm, mas a sua sabedoria é a do poder da fé que soube devassar o
mistério da vida.
-- "Richard — disse eu, em dado instante, valendo-me dos recursos de minha
passada literatice, no desdobramento de nossa palestra -- você sabe que foi o
Pisístrato9 quem ordenou a publicação das rapsódias homéricas?"
-- "Ignoro; -- respondeu ele, humildemente -- em compensação, sei que Jesus
ordenou aos seus apóstolos a grafia dos Evangelhos."
-- "Ah! é verdade!...
-- fizemos nós dentro de nossas taras psicológicas de jornalista desencarnado --
sem os Evangelhos todo o esforço do mundo será justamente o trabalho improfícuo
das Danaides".
-- "Danaides? -- exclamou o nosso amigo, na sua faina educativa -- Não preciso
ainda desse conceito mitológico, porque no próprio Evangelho está escrito que
não se coloca remendo novo em pano velho."
E é desse modo que, em cada conceito, surge para nós um ensino novo.
Por largo tempo ainda, comentamos a incúria dos nossos companheiros mais caros,
condenando a indiferença dos corações desviados da luz e da fé, nos caminhos da
ignorância, sem os clarões amigos da Verdade.
Em seguida, falamos da Caridade e dos seus grandes labores na face da Terra,
organizando-se, entre nós, os mais alevantados ideais para a construção de
celeiros de atividade material, quando o nosso amigo sentenciou:
-- "Irmãos: nesta Casa, temos de compreender que toda caridade, em seus valores
mais legítimos, deve nascer do Espírito.
As idéias religiosas do mundo não se esqueceram de monumentalizar as suas
teorias de abnegação e bondade.
Hospitais e orfanatos, abrigos e templos se edificaram por toda parte;
entretanto, o homem foi esquecido para o Conhecimento e para Deus.
A caridade que veste nus e alimenta os famintos está certa, mas não está justa,
se desconhece o Evangelho no santuário do seu coração.
A obra de Ismael tem de começar no íntimo das criaturas.
Aqui, não podem prevalecer os antagonismos do homem, no acervo de suas
anomalias.
Iniciar pelo fim é caminhar para a inversão de todos os valores da vida.
A Casa de Ismael tem de irradiar, antes de tudo, a claridade do amor e da
sabedoria espiritual, objetivando o grandioso serviço da edificação das almas.
Primeiramente, é necessário educar o operário para os preciosos princípios e
finalidades da máquina.
Iluminado o homem, estará iluminada a obra humana.
A evolução da alma para Deus se fará, então, por si mesma, sem desvios da meta a
ser alcançada.
Não haverá razão para o sacrifício de seus pregoeiros, porque em cada coração
existirá um hostiário celeste." -- "Mas, Richard -- objetou um de nós, fascinado
pela sua erudição divina e pela clareza de sua lógica -- como poderemos fazer
sentir a todos os nossos irmãos pela fé e pelo trabalho a sublimidade desses
raciocínios?" Todavia, Pedro Richard apontou-nos para a luz que vinha da célula
de Ismael, onde nos reuníramos para receber as bênçãos das Alturas.
Bittencourt Sampaio já havia chegado para distribuir os fragmentos do pão
milagroso de sua divina sabedoria.
E, em silêncio, como se nos aquietássemos sob uma força misteriosa, sentimos que
serenavam, em nosso íntimo, todas as preocupações pueris trazidas do nevoeiro
espesso do mundo.
De alma genuflexa, esquecidos das querelas e das amarguras terrestres,
recolhemos o coração na urna suave da fé, para ouvir, então como discípulos
humildes, a lição de humildade, que nos trazia o grande apóstolo da mensagem
excelsa e eterna do Cristo.
Pisístrato -- Tirano de Atenas, amigo dos romanos.
Danaides -- Nome das cinqüenta filhas de Danáus (rei mitológico do Egito), as
quais, menos uma, mataram -- na própria noite nupcial -- os respctivos maridos.
Foram por isso condenadas, no Tártaro (fundo do Inferno mitológico), a encher um
tonel sem fundo.
Humberto de Campos