Orígenes e a Palingenesia

Supõe-se que Origenes tenha nascido em Alexandria, por volta do ano 185. Depois do martírio de seu pai Leônidas (202), cuidou da família, dedicando-se ao ensino. Em 202, quando Clemente abandona a Escola Alexandrina, Origenes o substitui. Durante o seu magistério a Escola atingiu o seu apogeu de esplendor. Ensinando teologia e filosofia, Origenes, por sua vez, estudava, completando sua formação filosófica com o neoplatônico Ammônio Sacas. Para consultas diretas às fontes bíblicas, aprendeu hebreu. Levava vida de rigoroso ascetismo. Em 212 visitou Roma, em 230, a Grécia. Foi ordenado presbítero na Palestina, apesar de ser eunuco e sem o consentimento do bispo Demétrio. Este, aborrecido, nos sínodos de Alexandria em 231 e 232 degradou-o, expulsando-o da comunidade de Alexandria.
Dirigiu-se a Cesaréia, na Palestina, sendo bem acolhido pelo bispo Teoctisto. Ali fundou uma escola semelhante à de Alexandria, tornando-se célebre por sua cultura. Um seu discípulo, Ambrósio, pôs à sua disposição sete taquígrafos e numerosos copistas e calígrafos, para que recolhessem o que ditava. Em 232 Júlia Mamea, mão do imperador Alexandre Severo, chamou-o a Antióquia, Síria, desejando ser instruída por ele. Na perseguição movida por Décio, foi encarcerado e atormentado barbaramente. Em razão dos maus tratos sofridos veio a falecer em Tiro, aos setenta anos, em 254 ou 255.
É o maior teólogo da escola oriental; sua influência foi universal; é o pai da teologia grega. Já em vida Origenes foi muito discutido, apreciado por uns e combatido por outros. Os padres gregos do século IV veneraram-no com um Mestre, mas a partir de 543 passa a ser anatematizado por “seus erros”, à sua excomunhão aderindo todos os Concílios orientais. Na Idade Média passou por herege. A partir do Renascimento e especialmente em nosso tempo reconhece-se a grande importância teológica de Origenes, e isso, segundo a Igreja, apesar de sua “doutrinas errôneas”. Entre essa “doutrinas errôneas”, ensinadas por Origenes, a reencarnação reponta como a mais significativa.
Por esse motivo tem-se feito em torno de sua obra uma conspiração de silêncio. Ruffinus, traduzindo o texto do “De Principiis”, em quatro livros, sua obra mais conhecida e onde se encontram seus “principais erros”, suprimiu o que se referia à palingenesia. Essa versão duvidosa pode, no entanto, ser corrigida por citações de S. Jerônimo e outros (Ed. Koetschan, CB, 3; Freiburg, 1894).
Para desembaraçar a doutrina de Cristo de toda a relação com a reencarnação e ao mesmo tempo diminuir a importância da palavra de Origenes, os escritores ortodoxos passaram a dizer que este grande “Pai da Igreja” tirou seus erros de Platão. Não é assim. Origenes aceitara essa doutrina – diz Pascal – de Clemente de Alexandria, que, por sua vez, a recebeu de Pantène, discípulo dos primeiros cristãos. Pantène foi primeiro mestre da Escola de Alexandria. Desde o ano de 181 é encontrado expondo e explicando o Cristianismo em Alexandria. As convicções reencarnacionistas de Pantène certamente se fortaleceram quando, por volta de 190, no “interesse do Cristianismo”, fez uma viagem à Índia, isto é, ao sua da Arábia. A doutrina palingenésica na Índia parece ser imemorial. Ali Pantène deve ter visto confirmado o que aprendera da primeira geração cristã. Sabe-se que seu mais ilustre discípulo foi Clemente de Alexandria que, por sua vez foi orientador de Origenes. Como se viu, Origenes substituiu-o à cabeça da Escola. Pantène morreu por volta do ano de 202 depois de Cristo. Dos seus numerosos escritos subsistem apenas dois pequenos fragmentos (V. Enc. De Berthelot, pág. 956, t, XXV).
Contrariando os seus intérpretes, o próprio Origenes protesta mais de uma vez conta a concepção platônica da palingenesia. Em “Contra Celso” (livro IV, c. XVII), obra em que refuta um platônico e racionalista, que pinta Jesus Cristo como um mentiroso e seus milagres como fraude de seus discípulos, fazendo a propagação do Cristianismo um efeito do terror pelo juízo de Deus, Origenes escreve:
Celso é completamente ignorante do objetivo de nossos escritos; é sobre a interpretação que ele dá que leva ao descrédito, e não sobre a sua significação real. Se ele houvesse refletido sobre o que é necessário a uma alma destinada à vida eterna, se ele houvesse pensado na natureza da sua essência e de seu princípio, não teria tornado ridícula a entrada do que é imortal em um corpo mortal, entrada que se efetua, não segundo o ensinamento platônico da metempsicose, mas segundo uma visão mais elevada deste fato.
Aqui, pois, vemos Origenes discordando do “ensinamento platônico” da metempsicose”. Qual é o seu ensinamento? É difícil de ser apresentado com clareza. Ele o envolveu em reticências e o expôs em uma linguagem para a qual a filosofia atual nem sempre conhece a chave. Todavia ele surge completo. Abarca a preexistência e a reencarnação, e mesmo certas associações particulares de almas humanas com almas animais, associações já antes dele assinaladas e que, no dizer de Pascal, são fatos capitais na misteriosa metempsicose. Em nosso tempo André Luiz lança forte jorro de luz sobre o fenômeno nebulosamente pressentido ao longo dos tempos, enquadrando-o nas diversas caracterizações da licantropia espiritual.
Mas, eis com Origenes explica a preexistência das almas nos universos anteriores:
A alma não tem começo nem fim ( “De Principiis”, liv. III, c.V).
As criaturas razoáveis existiam desde o começo destes séculos, que nos não vemos e que são eternos. Houve aí a descida de uma condição superior a uma condição inferior, não somente entre as almas que mereceram esta mudança por suas ações, mas também entre as que, para servirem o mundo, deixaram as altas esferas pela nossa. O Sol, a Lua, as estrelas e os anjos servem o mundo, servem as almas cujos defeitos mentais as condenaram a encarnar-se em corpos grosseiros, e é por interesse das almas que tem necessidade de corpos densos, que o mundo foi criado... A variedade deste arranjo foi obra de Deus, que estabeleceu segundo as causas que o livre arbítrio das almas criaram no passado (“De Principiis”, liv. III, c.V).
A evolução no curso dos renascimentos é claramente indicada; a desigualdade de condições provém de vidas anteriores:
Não é razoável que as almas sejam introduzidas nos corpos em relação com seus méritos e as suas ações anteriores, e que aquelas que utilizaram os seus corpos para praticarem a maior soma de bem possível tenham direito a um corpo dotado de qualidades superiores aos outros corpos? (“Contra Celso”, liv. I).
Todas as almas alcançaram o mesmo fim (“Contra Celso”, liv. I); as almas engrandecem-se pouco a pouco, atingem a Terra e aprendem as lições que ela lhes pode dar, depois sobem a um lugar melhor e chegam finalmente ao estado de perfeição (“De Principiis”, liv. I, c. VI). Mediante vidas repetidas em diversas esferas onde elas tomam corpos em relação com o mundo que habitam, estas almas caídas reconquistarão a pureza e a bondade (“Contra Celso”, c.VI e VII). Certas almas chegadas ao repouso completo voltam em novos corpos, em mundos novos; umas conservam-se fiéis, as outras degeneram-se de tal forma que se tornam demônios (“De Principiis”, liv. IV, c.IV).
E alhures:
A alma, sendo imaterial e invisível, não pode existir em nenhum lugar material sem revestir corpos apropriados a este lugar; ela rejeita, num dado momento, um corpo que era necessário até aí, mas do qual não tem necessidade, e ela o troca por outro. (“Contra Celso”, liv. VII, c. XXXII).
Origenes serviu-se muito da doutrina dos renascimentos para criticar e justificar os livros sagrados. Fazendo alusão a certas passagens da Bíblia, ele diz:
Se o nosso destino atual não era determinado pelas obras de nossas existências passadas, como poderia Deus ser justo, permitindo que primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes de haver cometido atos merecendo a servidão e o ódio? Só as vidas anteriores podem explicar a luta de Jacob e Esaú, antes do seu nascimento, a eleição de Jeremias durante o tempo em que estava ainda no seio de sua mãe..., e tantos outros fatos que atirarão o descrédito sobre a justiça divina, se não forem justificados por atos bons ou maus, cometidos ou praticados em existências passadas (“Contra Celso”, liv. I, III).
Se bem que a “metensomatose”, isto é, a verdadeira doutrina de Origenes, não seja apresentada sob uma forma clara, a palingenesia não é posta em dúvida por ele, que influenciou consideravelmente os filósofos cristão dos primeiros séculos e foi acolhido com simpatia até a sua condenação no Sínodo de Constantinopla. As seitas da época, conforme argumenta Pascal, e as do séculos consecutivos – simonistas, basilistas, velencianistas, marcionistas, gnósticos, maniqueus, priscilianos, cátaros, tártaros, albigenses, bogomilenses, etc. – eram todas reencarnacionistas.
O Sínodo de Constantinopla ocorreu em 543. Foi nesta data precisamente que se condenou ao esquecimento um ensinamento sublime que a Igreja tinha o dever de conservar preciosamente e transmitir às gerações futuras como um farol em meio aos escolhos sociais, um ensinamento que teria desenraizado esse egoísmo estúpido que ameaça aniquilar o mundo, que nos dá uma perfeita idéia da justiça de Deus, contrapondo-se á velha doutrina das graças e das predestinações, que anula o valor do esforço humano em detrimento de afirmativas inconsistentes e originárias de uma escolástica profundamente humana.
Em 553, no grande Concílio realizado em Constantinopla, convocado por Justiniano, que se envolvia em questões teológicas, tratou-se de três pequenos escritos diferentes, que não se conhecem mais em nossos dias. Eram denominados “os três capítulos”. Disputou-se também sobre algumas passagens de Origenes.
O bispo de Roma, um certo Virgílio, quis ir lá ter em pessoa; mas Justiniano fê-lo pôr em cadeia. O patriarca de Constantinopla presidiu a este Concílio. Nele não compareceu ninguém da Igreja latina, porque, então, o grego não era mais compreendido no Ocidente, tornado inteiramente bárbaro (Voltaire, Dict. Phisosophique, pág. 609).
A respeito, a “Encyclopédie de Berthelot” comenta o seguinte:
Em 2 de junho, tendo já proclamado o direito da Igreja de pronunciar uma condenação póstuma contra um herético, resumiu as sua decisões precedentes e condenou formalmente os três capítulos e, em outra, a pessoa de Teodoro. Estes anátemas foram pronunciados com expressões análogas aqueles em que Justiniano se serviu nos seus éditos. Ele adotou semelhantemente, contra os ERROS DE ORIGENES as condenações contidas num édito de Justiniano e confirmadas por um precedente Concílio de Constantinopla. Virgílio resignou-se finalmente a aprovar todas essas decisões, etc. (E. H. Vollet. Pág. 627).
Com estas decisões infelizes, roubou-se a reencarnação ao Cristianismo. O trabalho dos Espíritos Superiores, através de Allan Kardec conseguiria a sua reincorporação tal qual a temos hoje, enquanto homens de ciência, o Dr. Ian Stevenson, por exemplo, tornam “best-seller”, um livro contendo “Vinte Casos Sugestivos de Reencarnação”. Taxado de herege e relegado ao esquecimento, Origenes pode voltar a ter o seu momento entre os precursores da Revelação. Excetuando-se João Crisóstomo e Agostinho, nenhum dos Pais da Igreja o comparam pela sua cintilante inteligência e erudição. Eusébio denomina-o: “o homem de aço”.
Para os espíritas Origenes ergue-se agora como um desafio crítico.


Wallace Leal Rodrigues