Mãos Mirradas
Enquanto a balada do Evangelho derramava alegrias nas mentes
ingênuas e nos corações sofridos das massas, as multidões se acotovelavam e se
empurravam para vê-lO, tocá-lO, estarem perto dEle.
Todos aqueles que tinham dificuldades e problemas viam em Jesus o Seu
libertador, e nEle depositavam sua confiança, sua ansiedade. Ele passeava o
olhar compassivo, e em todos infundia ânimo e esperança, confortando-os com ou
sem palavras através da irradiação do Seu psiquismo e da Sua ternura
incomparáveis.
Simultaneamente porém, a noite que predominava nos corações dos opressores e
governantes impiedosos, dos dominadores de um dia, dos religiosos presunçosos e
ricos de inveja, dos cobiçosos, de todos aqueles que somente desfrutavam de
primazias e honras, temendo perdê-las, preparava o caldo de cultura do ódio,
para infamá-lO, para O pegarem em alguma contradição, cujas armadilhas
estabeleciam com cinismo e sofismas bem urdidos.
Mas Jesus os conhecia e se fazia inalcançável às suas tricas farisaicas
hediondas e venais. Aumentava o número daqueles que se beneficiavam com o Seu
socorro e crescia a onda que se propunha afogá-lO nas suas águas torvas e
iníquas. * A sinagoga era lugar de orações e recitativos da Lei, de unção, de
companheirismo... mas também de encontros para a sordidez e a vingança, para a
sedição e a perversidade.
Ali se refugiavam o orgulho e a presunção, que a governavam, ditando regras de
bom proceder para o povo necessitado. Entre eles, os que se permitiam todos os
privilégios, tornavam-se conhecidos as suas mesquinharias e fraquezas, os seus
comportamentos vis e perturbadores, que sabiam disfarçar diante daqueles que os
ouviam e respeitavam, embora eles não se respeitassem a si mesmos, pois que se
isso ocorresse, impor-se-iam outra conduta moral.
Assim sendo, como sempre que Lhe era possível o fazia, Jesus entrou de novo numa
sinagoga. Havia ali um homem que tinha a mão paralisada. * A multidão que ora O
seguia já não era somente de galileus e de sírios, mas também de judeus, de
Jerusalém, de Tiro, de muitas partes, atraída pelo Seu verbo e pela Sua força de
libertação.
Lá fora, na paisagem irisada de luz, as anêmonas balouçavam nas hastes frágeis e
violetas miúdas derramavam perfume nos rios do vento que o conduz por toda
parte. A astúcia dos seus adversários esperava que Ele se propusesse a curar no
sábado, a fim de terem motivo para prendê-lO por desacato à Lei que estabelecia
o repouso nesse dia.
O Mestre conhecia-lhes a intimidade dos sentimentos ultrizes e a vileza moral em
que se debatiam. Por isso mesmo, não os temia, antes compadecia-se da sua
miséria espiritual. Jesus disse ao homem que tinha a mão mirrada: - Levanta-te!
Vem para o meio. Convidar para o centro é dignificar o ser humano, que vive
atirado na margem, ignorado, desrespeitado e esquecido. Essa é uma forma de
restituir a identidade de criatura que merece respeito e carinho.
Ante o espanto natural e a possibilidade de Ele ferir os costumes legais,
ouviram-nO interrogar: - Que é permitido no dia de Sábado, fazer o bem ou fazer
o mal? Salvar um ser vivo ou matá-lo? cadinho purificador. Transformam-se em
testes de resistência para os homens e mulheres que anelam pelo mundo melhor e
se doam a essa causa. São duros de coração, que não se enternece, nem se comove.
O órgão vibra e impulsiona o sangue, mas nada tem a ver com a emotividade, com
os sentimentos de beleza e de fraternidade. Terminam por tornar-se carcereiros
de si mesmos, enjaulando-se nas celas da indiferença que os entorpece e mata.
Jesus os defrontará com mais assiduidade, porém, sem atribuir-lhes qualquer
significado ou considerar-lhes a distinção que se permitem, aumentando neles o
ódio e a perseguição. Eles passam e a vida os esquece, mas não se olvidam de
como agiram, de como são e do quanto necessitam para a reedificação. Há muitas
mãos mirradas na sociedade dos dias atuais. Perderam a função superior e
estiolaram as fibras que as constituem no jogo apetitoso dos interesses
inferiores. Encontram-se no centro dos grupos, experimentam destaque, mas não
são atuantes no bem nem na compaixão para receber os que eles mesmos expulsaram
do seu convívio e ficaram na marginalidade.
Agora constituem o grupo dos antigos fariseus e herodianos, que sempre a usavam
para perseguir e matar. Trouxeram-na internamente mirrada, embora o exterior
seja normal e atraente. Estão imobilizadas no cimento em que se encarceraram,
aguardando Jesus, para chamá-los ao meio e curá-los.
Amélia Rodrigues