Um Machado Chamado Atitude
Há muito, muito tempo, havia um Buda dourado. Esse ser
magnífico era feito de toneladas de ouro puro e tinha a altura de dez homens. O
grande Buda estava serenamente sentado na postura de lótus, no jardim de um
mosteiro, construído no alto de uma encosta que delimitava uma pacífica
cidadezinha. Nesse local tão tranqüilo, eram muitos os peregrinos espirituais
que permaneciam sentados, meditando aos pés do Buda dourado, contemplando as
profundezas do próprio ser.
Um dia chegou ao mosteiro a notícia de que um exército inimigo, de uma cidade
vizinha, estava a caminho para invadir aquele local. Essa informação perturbou
os monges, pois eles sabiam que, se aquele exército descobrisse o Buda dourado,
ele seria profanado e destruído. Apressadamente, os monges reuniram-se para
tentar encontrar uma maneira de salvá-lo. Depois de examinarem muitas idéias, um
monge propôs que se disfarçasse o Buda. – “Vamos cobri-lo com lama, pedras e
argamassa”, sugeriu ele. – “Então, os invasores vão acreditar que a estátua é só
uma escultura de pedra”. A idéia foi aprovada por unanimidade, e o projeto teve
início.
Os monges trabalharam com afinco durante toda a noite. Iluminados pelo místico
fulgor das tochas incandescentes, todos os monges, novos e idosos, ofereceram
orações e somaram forças para salvar o Buda. Finalmente, quando começava a
despontar o dia no céu oriental, a última camada de concreto foi despejada sobre
a cabeça do Buda. O grande deus de ouro tinha se transformado numa estátua de
cimento.
E foi bom que os monges tivessem trabalhando com tanto zelo, pois mais tarde,
nesse mesmo dia, os pesados passos e o ranger das rodas do exército guerreiro
invasor se fizeram ouvir na entrada da cidade. Os soldados escalaram a colina
onde ficava o mosteiro e enfileiraram-se ao longo do templo. Os monges,
ansiosos, espreitavam a procissão, orando com todo o fervor para que nem uma
centelha de ouro brilhasse em meio ao revestimento que disfarçava o Buda. O
exército passou, e os soldados mal olharam para trás. Os monges deram um
profundo suspiro de alívio – o plano tinha dado certo. O Buda passara
despercebido. Assim, os monges retornaram satisfeitos às suas atividades.
Passaram-se os anos, e depois de muito tempo o exército invasor abandonou a
aldeia. Nessa ocasião, porém, todos os monges que tinham recoberto o Buda já
tinham falecido ou saído do mosteiro. Na verdade, não restava na cidade ninguém
para lembrar que a verdadeira natureza do Buda era de ouro. Todos os que estavam
no mosteiro ocupavam-se com os seus afazeres, e os que olhavam para a estátua
acreditavam que fosse feita de pedra.
Mas, certo dia, um jovem monge estava sentado nos joelhos do Buda, meditando.
Quando ele se ergueu, ao fim das preces, apoiou-se nas pernas do Buda, e um
pedacinho do concreto despregou-se do joelho do Buda, caindo no chão. Surpreso,
o monge observou que algo brilhava embaixo da pedra. Tirando os fragmentos, ele
descobriu que existia um outro Buda por baixo daquele que todos contemplavam – e
ele era de ouro!
O monge correu até o grande saguão do templo, onde os outros estavam estudando.
“Venham imediatamente”, ele gritou, “o Buda é de ouro!”
Os monges abandonaram o que estavam fazendo e foram em bando até onde ficava a
estátua. Quando viram que o monge estava falando a verdade, voltaram correndo
para pegar marretas e cinzéis. Juntos começaram a retirar as pedras e a
argamassa que haviam disfarçado o Buda por tantos anos. Não demorou muito para
que todo o disfarce fosse removido, e o Buda dourado fosse devolvido ao seu
esplendor original.
A história do Buda dourado é verdadeira. Hoje ele está majestosamente assentado
no Templo do Buda Dourado, em Bangcoc, na Tailândia. Milhares de devotos se
colocam a seus pés, encontrando refúgio na natureza áurea que existe no interior
de si mesmos.
As pedras, a lama e a argamassa que revestiram o Buda durante anos e esconderam
o brilho da sua natureza interior, podem ser comparadas às estruturas
psicológicas que impedem os indivíduos de conhecerem a si mesmos e de usufruírem
a sua própria “riqueza íntima”. Estas estruturas – conjunto de crenças e padrões
de comportamento –, não foram criadas no momento em que o espírito foi
concebido, porquanto esse foi criado simples e ignorante. Em realidade, foram
sedimentadas na sua psique durante as inúmeras experiências vivenciadas no
processo reencarnatório.
Um indivíduo que durante várias encarnações foi influenciado pela crença de um
Deus punitivo, vingativo e cruel, invariavelmente terá uma estrutura psicológica
sedimentada nos sentimentos de culpa. O espírito que esteve revestido por um
corpo masculino durante sucessivas encarnações, estará moldado numa estrutura
masculina machista e preconceituosa, manifestando dificuldades em lidar com os
aspectos femininos da sua natureza. A crença no sofrimento como único meio de
elevação das almas formará no indivíduo um “repositório mental” que atrairá uma
vida repleta de lutas e angústias, cheia de muito sofrimento e poucas
realizações. A crença de que a caridade consiste na prática de atos exteriores
alicerçará no espírito uma visão distorcida de si mesmo, por meio da qual se
acreditará num grande “missionário do amor”, quando, em verdade, estará fugindo
de si mesmo ou se compensando dos seus “desajustes internos” através da
caridade. A criança, por exemplo, ao ser repreendida por demonstrar raiva, ou
colocada em situações vexatórias por aparentar medo ou, ainda, ridicularizada
por manifestar afeto e carinho, aprenderá a reprimir essas emoções por serem
consideradas feias, erradas e pecaminosas por adultos insensíveis e
recriminadores. Maneiras distorcidas de se ver a sexualidade, a religião, o
casamento, as raças e as profissões distanciam o indivíduo cada vez mais da
realidade das situações e das criaturas com as quais convive e, principalmente,
distanciam-no de si mesmo.
A exemplo da história do Buda dourado, este “concreto psicológico” ainda reveste
o comportamento do homem e desvirtua-lhe a visão da vida, tanto nas questões
interiores da alma como exteriores. Ao sufocar a sua própria natureza,
condena-se a viver na superficialidade da vida, ignorando a fonte de felicidade
e realização que repousa no interior de si mesmo. Papéis, jogos, fugas,
compensações, acusações, “justificativas filosóficas” são alguns dentre os
vários comportamentos de que o homem se utiliza para sabotar o relacionamento
consigo mesmo e, por conseqüência, com os outros. Abstendo-se de tomar contato
com as suas emoções e sentimentos mais profundos, não realiza o trabalho de
reforma interior proposto pela vida.
Uma existência autêntica e genuína pressupõe um indivíduo liberto dos
condicionamentos exteriores, das amarras religiosas, das ilusões que entorpecem
a raiz dos sentimentos, dos julgamentos pré-concebidos, das condenações, das
competições efêmeras, das idealizações, etc.. Assim, será impossível ao homem
conquistar um grau satisfatório de felicidade enquanto insistir em ser o que os
outros pensam que ele é, deixando de ser apenas o que pode ser: ele mesmo.
Ao observar passagens da vida de Jesus, o homem terá exemplos de um indivíduo
livre, que se conduzia no exercício pleno do seu livre-arbítrio, absolutamente
integrado com a sua universalidade interior.
Eis algumas delas: o episódio memorável onde Jesus compreende a atitude de Maria
de Magdala, quando surpreendida em adultério, ao convidar para atirar a primeira
pedra aquele dentre os seus algozes que estivesse sem pecados; ao convidar-se no
meio da multidão para ceifar na casa do publicano Zaqueu, homem recriminado pela
sociedade por sua função de coletor de impostos do Império Romano; ao expulsar
do Templo os vendilhões que insistiam em fazer comércio da fé; ao chamar de
hipócritas e túmulos caiados os anciãos do Grande Sinédrio, numa alusão ao
absoluto desacordo entre o que pregavam e o que viviam; ao demonstrar angústia e
medo ante os momentos que antecediam o caminho do Gólgota, quando suplica ao Pai
para afastá-lo do cálice amargo que viveria; e, por fim, durante o episódio em
que foi repudiado por não lavar as mãos antes das refeições, quando ensina às
criaturas que estarão enlameadas não por aquilo que entrar em sua boca, mas por
aquilo que sair do coração, numa crítica ao comportamento dos indivíduos que
supervalorizam os aspectos exteriores da vida em detrimento da ruína interior.
Em todas essas passagens é possível identificar no Cristo um homem pleno,
liberto, que tomava atitudes de acordo com a sua consciência, não se importando
com os aspectos exteriores e nem tampouco com os comentários que o povo poderia
fazer sobre o seu comportamento. Entre satisfazer o mundo e violentar a sua
própria consciência, preferia sempre agir de acordo com os seus princípios,
crenças e valores, ainda que essa conduta lhe custasse a vida, como realmente
aconteceu. Mesmo diante da morte, permaneceu fiel aos seus ideais e às suas
convicções, numa demonstração inequívoca do verdadeiro sentimento de fé e da
profunda comunhão que o ligava ao Pai.
Diferentemente, porém, o homem continua recalcitrante em aceitar o fato de que a
sua natureza íntima é composta de “ouro”, preferindo viver na inércia e dureza
da “argamassa” que reveste o seu comportamento. Ao invés de olhar para si mesmo
e efetuar as mudanças que a sua própria vida exige, o homem luta para quebrar a
“argamassa” que reveste o comportamento dos outros, em atitudes que revelam
desrespeito e alienação, embora prefira chamar a intervenção sistemática na vida
dos outros como atos de amor: “Só faço isto porque te amo”, “Só estou pensando
no teu melhor”, “Só não quero que você sofra”, “Um dia você entenderá as minhas
atitudes”, etc..
No sentimento de amor está implícito o respeito. Amor sem respeito é como
carriola vazia: faz barulho, mas não tem nada.
Portanto, a reencarnação oferece ao indivíduo a feliz oportunidade de retirar as
máscaras que encobrem a sua beleza interior, de assumir-se em sua grandeza.
Afinal, o homem pode esconder quem é, mas não pode destruir isto: quer queira,
quer não, terá de descobrir a sua verdade interior e viver para ela.
Tomar atitudes respeitando as opiniões alheias, mas sobretudo respeitando a sua
voz interior; analisar os fatos e as pessoas sem estar contaminado por
julgamentos pré-concebidos; escolher quando ficar e quando partir, sem
prender-se nas amarras da culpa; sorrir sem receio de ser ridicularizado; dançar
nos bailes da vida despreocupado com a observação dos outros; vestir-se nem
sempre de acordo com a moda, mas sempre de acordo com o seu bem-estar; dizer sim
quando se quer dizer sim, e dizer não quando se quer dizer não; gostar de alguém
sem nenhuma condição ou exigência, nem tampouco lutar para satisfazer as
expectativas e as exigências dos outros; procurar se transformar em pessoa, ao
invés de fugir de si mesmo na tentativa de se transformar em santo; deixar as
pessoas viverem o seu melhor, para que também tenha o direito de viver o seu
melhor; permitir-se errar, vendo em cada erro uma nova lição e a oportunidade do
recomeço; não julgar ou condenar, para não ter de passar uma vida inteira
aprisionado nos limites dos próprios julgamentos; não fazer da religião um
instrumento de fuga das realidades de si mesmo, mas sim transformá-la em um elo
de ligação com o Pai; correr riscos, sabendo desde já que a vida por si só é um
risco constante; não fazer do amor uma prisão, mas sim transformá-lo em
experiência única e verdadeira de perceber a grandiosidade da vida; etc., podem
ser algumas alternativas saudáveis para o homem que busca permear os caminhos da
felicidade.
Para aqueles que desejam viver a experiência maravilhosa de se transformar em
pessoas, lanço aqui a sugestão: comprem um machado chamado “atitude” e comecem
desde já a quebrar a “argamassa” que insiste em esconder o “ouro” que jaz
adormecido em sua própria essência. Dá um pouquinho de trabalho, eu reconheço.
Mas, dá muito mais trabalho ao homem o ato de lutar para manter as máscaras e as
aparências ou, se preferir, a “argamassa” que encobre a sua verdade.
Silvio Carlos - Revista Delfos