Amélia é que Era Mulher de Verdade?
“Quando lemos um romance, tudo nos parece tão fácil, tão
claro. Mas basta que nós mesmos amemos, para vermos que ninguém sabe nada e que
cada um deve decidir por si.”[1]
Procuremos desmistificar o romantismo. Trata-se de livrar ou tirar da
mistificação as emoções e sentimentos que envolvem o que denominamos romântico.
Mistificação refere-se a engano ou burla. Portanto, a proposta é procurar
esclarecer certa confusão que os apaixonados fazem, chamando de romantismo tanto
o ato de oferecer um ramalhete de flores para alguém como falar a verdade ou ser
transparente sobre os seus sentimentos para com o outro e até mesmo ser fiel.
São comportamentos e atitudes muito diferentes.
As pessoas que se auto denominam românticas, geralmente são sonhadoras e levam a
vida idealizando as coisas que devem acontecer, ou tomam como certas a previsão
de experiências que devam passar nos seus dias futuros. O comportamento de
idealizar é a ação de conceber de forma ideal, tudo que possa envolver
situações, fatos, acontecimentos mas que ainda estão por acontecer. Trata-se de
uma criação imaginária, fantasiosa, produzida na mente de alguém. Pode também
dizer respeito a um projeto, plano ou programação com qualidades fantásticas,
geralmente acima de qualquer dificuldade ou condição de se ter como certo algo
ainda não existente ou não concretizado.
A idealização acaba trazendo para mais perto um futuro desejado, o que pode ser
entendido como simples produto dos meus desejos que, como tais, serão bons para
mim mesmo. Acontece que, trazer para mais perto esse futuro médio ou remoto,
cria na pessoa uma ansiedade ou consolida uma ansiedade já existente que quer
ver realizado, o quanto antes, o objeto do seu desejo. O problema é que, quando
a pessoa está falando de sentimentos, está falando de algo planejado, muitas
vezes, somente com intenções ou com expectativas. A pessoa tem a intenção de que
o amor de outro ou de outra seja dela. Deseja isso. Tamanho é o seu desejo,
aumentado pela ansiedade de ter algo que lhe falta, que transforma o desejado em
certeza. No entanto, nem comunicou isso à outra pessoa. Isso faz toda a
diferença. A outra pessoa nem mesmo sabe que alguém espera e conta como certo
que o seu amor será todo dedicado a quem a deseja. É como fazer um pacto com
alguém mas de um jeito que somente uma delas está sabendo do combinado.
Se alguém lhe oferece flores, chama-o de romântico. Se alguém diz lhe amar por
toda a vida, chama-o também de romântico. No entanto, se o seu marido não quer
ir ao supermercado com você, será acusado de falta de romantismo. Se a lua cheia
já não parece mais tão poética depois de um dia em que ambos chegam cansado do
serviço, chamamos a isso de falta de romantismo ou fim do amor. Quando certos
sentimentos do casal já não são verbalizados com facilidade porque tornaram-se
mais duros, realistas e pouco poéticos, chamamos também a isso de falta de
romantismo. É de se lamentar que o realismo que deixa o poético de lado, mas tem
mais a ver com a transparência ou honestidade nas atitudes, seja tido como o
começo do fim, quando pode ser entendido como recomeço ou o momento em que ambos
podem reaver os seus sentimentos. Talvez não seja possível continuar uma
experiência poética uma vez que “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”[2]. Se o poeta define-se
assim, na dura realidade do dia-a-dia não é possível mesmo viver romanticamente.
Assim vamos praticando cada vez mais, confusões em torno do que queremos dizer
quando lamentamos que uma relação já não mais possui um clima romântico como
existia no seu início ou mesmo durante boa parte da existência em comum.
Uma das causas dessa confusão é idealizar uma construção imaginária que, na
nossa cabeça, sempre dará certo e nunca pressupõe dificuldades ou impedimentos.
Entende-se por idealizar, sempre um planejamento perfeito. Entretanto, o
planejamento perfeito só existe no imaginário das pessoas. As relações entre
duas pessoas que deixaram de ser idealizadas porque a vida lhes fez mais
realistas com os pés mais bem plantados no chão, deixou de ser expectativa,
ganhou a condição de construção verdadeira, mais ciente dos limites,
imprevistos, dificuldades e desvios do que fora planejado. Numa construção
verdadeira, pautada em alternativas e objetivos mais claros e menos ingênuos,
existe menos idealização, mais realismo, menos romantismo e mais possibilidades
de gestos afetivos que serão externados em manifestações de colaboração,
compartilhamento, alegria de estarem conseguindo objetivos comuns, celebrações
de amizade porque as etapas do projeto comum de ambos estão sendo cumpridas.
Isto fortalece a amizade de duas ou mais pessoas que fizeram planos e levam à
frente projetos e além de tudo, inspira mais confiança construída passo a passo.
A confiança que existe no início de uma relação que chamamos de feliz e
romântica geralmente é plena, porque é irreal. A confiança que se estabelece ao
longo do tempo é real, porque é baseada em resultados, ao mesmo tempo que é
imperfeita porque ainda está sendo construída. É limitada porque terá que contar
com dificuldades e mudanças no que foi planejado. Construída em bases e ações
mais reais, será menos romântica.
A música de Mário Lago e Ataulfo Alves diz que “Amélia não tinha a menor
vaidade. Amélia é que era mulher de verdade. As vezes passava fome ao meu lado e
achava bonito não ter o que comer”. A atitude da Amélia é romântica, idealizada.
Mas a relação afetiva que ela propõe é apenas poética. Tem muita intensidade mas
será de pouca durabilidade. Logo, suas atitudes serão misturadas com lamúria,
baixa estima e sentimentos de menos valia, sensação de azares ou de ser burra e
perseguida pela vida. Não lhe faltarão os pensamentos de estar sendo traída e
logo concluirá que pode trair também. Possui uma confiança irrestrita,
construída sobre o nada. Carece de sentimento de confiança baseado numa
trajetória aonde é comum perceber e compartilhar problemas que acontecem ao
longo de uma vida a dois. Não estará apta a botar as mãos na massa para poder
superá-los. É irreal na medida em que contempla e não tem ação. Não se queixará
por algum tempo e nem dará mostras de estar inconformada, enquanto tudo parecer
um sonho. Os sonhos jamais estarão baseados em compromissos que têm de ser
refeitos a cada passo e a cada nova dificuldade. A relação de confiança baseada
em experiências, sejam dolorosas ou felizes faz-se sobre a reafirmação de
propostas feitas a cada novo dia, muitas vezes, sobre os mesmos propósitos, pois
a cada amanhecer temos disposições diferentes sobre as nossas mesmas intenções.
Concordo que seja tentador imaginar Amélia romântica. Mas ela não é. A palavra
apropriada é poética. Amélia é poeticamente paciente e admiradora do seu homem.
Ela fala com o coração e os sentimentos. Sendo assim podemos confirmar a frase
do poeta que disse “a arte só faz versos: só o coração é poeta[3]”. A explicação
nos vem apropriadamente de um poeta italiano dizendo que “a lembrança é
essencial e principal no sentimento poético, não por outra coisa senão pelo fato
de que o presente, qualquer que ele seja, não pode ser poético; e o poético, de
um ou outro modo, consiste sempre no que é distante, indefinido, vago”[4]. E por
quê o presente não pode ser poético? Porque não podemos poetizar o que passou. É
fato consumado. Não podemos romancear o futuro porque ainda não é real. De tudo
que falamos, se muito não foi explicado, quem sabe nos reste ficar com Hilda
Hilst (1930-) que poetizou “ventura a minha, a de ser poeta e podendo dizer,
calar o que mais me afeta”.[5]
[1] Tchecov (1860-1904). As Três Irmãs, Ato III. Dicionário Universal de
Citações, Paulo Rónai, Nova Fronteira, São Paulo, 1985.
[2] Fernando Pessoa, (1888-1935), Cancioneiro. Ibidem.
[3] André Chénier, 1762-1794, Elegias. Ibidem.
[4]G. Leopardi, poeta italiano, 1798-1837. Dicionário das Citações, Ettore
Barelli e Sergio Pennacchietti, Martins Fontes, São Paulo, 2001.
[5] Hilda Hilst (1930-), Poesia 1959/1967. Ibidem.
Enéas Canhadas