Falando à Terra
Nunca me honrei com aplausos e louros, que os não mereci, mas
vigiei, quanto pude, na preparação de tua vitória, exercendo o ministério do
direito a que te afeiçoaste, desde o sonho impreciso dos missionários
expatriados que te marcaram as primeiras linhas de evolução, voltados para o
esplendor da Igreja primitiva. Incorporando-te à essência de meu sangue e de meu
ideal, confiei-me - célula microscópica - à tua grandeza imperecível e tomei
assento nas lides da palavra e da pena, nos tribunais e nas praças, na guerra
sem quartel daqueles que não conhecem o conselho dos generais, nem o apoio das
baionetas.
Por ti, suportei, orgulhoso, o peso de asfixiantes responsabilidades que me
feriram os ombros e me iluminaram o coração, na evidência e na obscuridade,
aprendendo e sofrendo contigo, na escola da igualdade, da tolerância e da
justiça.
E agora, que a ciência mortífera grava transitória supremacia nos regimes,
estimulando a política da força pelo triunfo numérico; que a perversidade da
inteligência lança o descrédito nos fundamentos morais do mundo; que a crise do
caráter emite vagas negras de perturbação e desordem; que a toga desce da
majestade dos seus princípios, para dourar os instintos da barbárie nos
tremendos conflitos internacionais que se agigantam no século; que a moral
religiosa concorre ao pleito de dominação indébita, imergindo nas trevas da
discórdia as consciências que lhe cabe dirigir; que a doutrina do sílex
substitui os tratados nas guerras sem declaração; que os dogmas de todos os
matizes se insinuam nas conquistas ideológicas da Humanidade, preconizando a
mordaça e o obscurantismo - agora ponho meus olhos em teu vasto futuro...
Possa continuar ecoando em teus santuários e parlamentos, cidades e vilarejos,
vales e montanhas, florestas e caminhos, a palavra imortal do Mestre da Galiléia!
Conserva a tua vocação de fraternidade, para que os mananciais da bênção divina
jorrem luz e paz sobre a tua fronte dignificada pelo esforço cristão na
concórdia e na atividade fecunda. Guarda o teu augusto patrimônio de liberdade a
distância de todos os gigantes do terror, dos deuses da carniça e dos gênios da
brutalidade, que tentam ressuscitar os fósseis da tirania.
Elege o trabalho por bússola do progresso e da ordem, porque de tuas arcas
dadivosas manará novo alimento para o mundo irredimido. Templo de solidariedade
humana, teu ministério de pacificação e redenção apenas começa... Novo hino será
desferido por tua voz no coro das nações. Nem Atenas adornada de filósofos, nem
Esparta pejada de guerreiros. Nem estátuas impassíveis, nem espadas
contundentes. Nem Roma, nem Cartago. senhores, nem escravos.
Desdobrem-se, isto sim, em teu solo amoroso os ramos viridentes da Árvore ao
Evangelho, a cuja sombra inviolável se mitigue a sede multimilenar do homem
fatigado e deprimido! Desfralda o estrelado pavilhão que te assinala os destinos
e não te quebrantes à frente dos espetáculos cruentos, em que os povos
desprevenidos da atualidade erguem cenotáfios e ossuários a própria grandeza.
Descerra hospitaleiras portas aos ideais da bondade construtiva, do perdão
edificante, do ilimitado bem, porque somos em ti a família venturosa do
Cristianismo restaurado, e, por amor, se necessário, mil vezes nos confundiremos
no pó abençoado e anônimo dos teus caminhos floridos de esperança, empunhando o
código da justiça para o exercício varonil do direito, emergindo das sombras da
morte - celeiro sublime da vida renascente.
Grande Brasil! Berço de triunfos esplêndidos, aberto à glorificação do Cristo,
seja Ele a tua inspiração redentora, o teu apoio infalível, a trave-mestra de
tua segurança; e, enaltecendo o messianismo do teu povo fraterno, em cujo seio
generoso se extinguem todos os ódios de raça e se expungem todas as fronteiras
do separatismo destruidor, que o Mestre encontre no âmago de teu coração o
sagrado pouso das Boas-Novas de Salvação, descendo, enfim, da cruz de nossa
impenitência multissecular para conviver com a Humanidade terrestre, para
sempre.
Ruy Barbosa